O difícil encontro entre o economista e o debate sobre o déficit habitacional brasileiro, por Evandro Luis

Nem todo mundo notou, mas em meio ao turbilhão de acontecimentos inesperados de 2020 o governo Bolsonaro, aos 45’ do segundo tempo, lançou a sua tão prometida nova proposta para política habitacional: o programa “Casa Verde e Amarela”. A intenção de substituir o célebre e bastante questionado programa habitacional Minha Casa Minha Vida (MCMV) por um novo programa já era algo anunciado pelo governo desde os seus primeiros dias. Ao longo de 2019, assistimos a uma série de tentativas malsucedidas do governo federal de emplacar uma política de “vouchers” para custear construção e reformas habitacionais no lugar do programa habitacional fortemente associado aos governos petistas. Contudo, o lançamento oficial do novo programa acabou acontecendo por meio de medida provisória somente no dia 25 de agosto de 2020, com enorme atraso em relação à proposta do governo para o Plano Plurianual 2020-2023 e sem o polêmico formato de execução via “voucher”. 


Sem viabilizar a mudança que pretendia inicialmente na execução do benefício ou outras mudanças mais significativas na lógica de funcionamento da política habitacional federal, o governo acabou tendo de assistir o Casa Verde e Amarela ser recebido pela opinião pública e pelas partes interessadas como uma espécie de “troca de nome” do Minha Casa Minha Vida para que o presidente Bolsonaro possa chamar o programa de seu. E ainda que ofuscado pela incontornável discussão sobre o auxílio emergencial e outras medidas de enfrentamento à crise da Covid-19, nos últimos meses, o tema chamou a atenção de alguns “intelectuais públicos” das áreas de ciências sociais aplicadas e mobilizou uma disputa de interpretações e de opiniões sobre a natureza do chamado déficit habitacional do país e de quais medidas deveríamos propor para enfrentá-lo.


Os dados de déficit habitacional no Brasil


Sendo ou não realmente tão idênticos, o certo é que os dois programas habitacionais federais têm a sua razão de ser justificada pelo ímpeto governamental de solucionar o “déficit habitacional” brasileiro, que no ano de 2015 girava em torno de 6,35 milhões de unidades habitacionais – ou seja, 9,3% dos mais 68 milhões de domicílios brasileiros. Essa é a informação trazida no relatório mais recente da pesquisa “Déficit Habitacional no Brasil”, produzida a partir dos dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (Pnad) pela Fundação João Pinheiro (FJP) – instituição de pesquisa e ensino do governo de Minas Gerais que tem por função essencial a produção de estatísticas e indicadores para políticas públicas. 



Mas do que exatamente estamos falando quando afirmamos que quase 10% dos domicílios brasileiros estão expressando um “déficit habitacional”? De acordo com a definição da FJP trata-se da “noção mais imediata e intuitiva da necessidade de construção de novas moradias para a solução de problemas sociais e específicos de habitação, detectados em certo momento” (FJP, 2018). Conforme a metodologia da pesquisa, o que este conjunto de mais de 6 milhões de núcleos familiares tenta expressar é uma certa medida das necessidades habitacionais da população que não estão sendo atendidas no Brasil devido aos “problemas sociais e específicos de habitação”.


Falar em “necessidade habitacional” torna mais evidente que não estamos simplesmente fazendo um “balanço” entre a oferta e a demanda de “unidades” habitacionais, mas trazendo também certas pré-concepções sobre quais são as necessidades (ou “carências”) habitacionais da população e porque razões elas não estão sendo socialmente atendidas a ponto de justificar uma intervenção governamental no curso da autoprodução social dos espaços de morar. Mas, ainda mais especificamente, estamos falando de certas necessidades habitacionais que não podem ser solucionadas sem uma mudança do aspecto “quantitativo” do parque habitacional. Temos assim, duas situações típicas: a) a necessidade de construção de novas unidades habitacionais – também chamada de “déficit por incremento de estoque”; e b) a necessidade de repor certa quantidade das unidades habitacionais existentes – também conhecida por “déficit por reposição de estoque”. 


Buscando identificar esta necessidade habitacional específica e eminentemente “quantitativa”, portanto, a metodologia da FJP registra então quatro grandes tipos de domicílio como sendo deficitários: 


  1. as habitações improvisadas ou rústicas – entram aqui os espaços improvisados de moradia como carros, barcos, barracas, casas construídas sem parede de alvenaria ou madeira e construções “rústicas” que resultam em maior probabilidade de conter insalubridade e proliferar doenças; 

  2. a coabitação familiar – um componente que remete à ideia de que as famílias convivem de maneira compulsória ou forçada, sobretudo devido às suas excessivas restrições econômicas e orçamentárias; 

  3. o ônus excessivo do custo do aluguel urbano – o conjunto de famílias que possuem renda de até três salários mínimos e que gastam, no mínimo, 30% de sua renda para pagar aluguel do imóvel onde vivem; e 

  4. o adensamento excessivo de moradores por dormitório – que considera apenas os domicílios alugados que possuem mais de três moradores por dormitório.



O (não) entendimento do economista sobre o déficit habitacional


Dada a magnitude em que o problema é apresentado e a necessidade de se colocar volumosos recursos públicos em políticas públicas para enfrentá-lo, as decisões políticas relacionadas ao déficit habitacional costumam ser bastante questionadas. E, dadas essas condições do problema, naturalmente, a comunidade de economistas brasileiros não deixaria de produzir suas interpretações para o problema e suas avaliações sobre as políticas públicas justificadas a partir dele. Porém, a abordagem do economista para o tema costuma produzir resultados que nos levam a perguntar se ele realmente faz alguma ideia do que está se propondo a discutir. E, a bem da verdade, programas habitacionais como o MCMV e o Casa Verde e Amarela parecem preocupar os economistas muito menos pela questão do déficit habitacional que as estruturam/justificam do que pelo seu volumoso aspecto fiscal e orçamentário.


O debate público travado entre o renomado economista Samuel Pessôa e a jovem economista Tainá Pacheco foi um desses momentos de disputa de opinião sobre o tema que surgiram nos últimos meses, e nos proporcionou uma boa oportunidade para refletirmos sobre o quão distante o debate economista está de compreender suas nuances. Na semana em que se discutia o tão prometido lançamento do novo programa federal, Pessôa decidiu apresentar em sua coluna na Folha um artigo de opinião em que questionava duramente os resultados do programa MCMV tendo por base o fato de que o déficit habitacional brasileiro aumentou ininterruptamente desde o lançamento do programa em 2009. Supondo uma espécie de “crescimento natural” do déficit para o período de 2009-2015 num montante de cerca de 1 milhão de unidades habitacionais e com um metodologia de cálculo muito peculiar, o economista conclui que das 1,8 milhões de unidades entregues pelo MCMV somente 600 mil unidades teriam reduzido o indicador – ou seja, as outras 1,2 milhões de unidades restantes teriam sido “desperdiçadas”. E, em linhas gerais, é por essa razão que não deveríamos mais apostar numa solução similar – se a experiência com o programa não conseguiu reduzir o total de déficit habitacional desde que se iniciou, logo precisamos abandonar este tipo de programa. Um argumento simples, intuitivo e equivocado que desencadeou uma série de críticas ao artigo, dentre as quais está inclusa a crítica da economista Tainá Pacheco. 


Por meio de um longo “fio” publicado em seu perfil pessoal no Twitter, Pacheco buscou rebater os principais argumentos trazidos na “avaliação” elaborada por Pessôa, definida por ela como “rasa”. E buscou também destacar alguns achados de sua pesquisa de mestrado que servem ao debate da avaliação do programa MCMV no que tange aos seus impactos na acessibilidade urbana, na distância média em que as famílias estão de áreas centrais e dos principais pontos de comércio e serviços na cidade. De modo um pouco curioso e inesperado, a grande circulação dos comentários de Pacheco nas redes sociais desembocou numa réplica de Pessôa publicada no blog do IBRE-FGV, que por sua vez ainda rendeu uma nova resposta de Pacheco, desta vez, também publicada no blog do IBRE-FGV. 


Em resumo, as respostas da economista ao seu colega de profissão e colunista da Folha buscaram bater na tecla de que para uma avaliação do programa MCMV, por mais simples que ela seja, é imprescindível que se apresente em maiores detalhes a dinâmica da composição do cálculo do déficit habitacional. Fazendo esse exercício de modo minimamente cuidadoso fica claro, por exemplo, que durante o período de 2009-2015 houve um crescimento expressivo da presença do fator “ônus excessivo com aluguel” no conjunto de fatores que indicam que uma família está residindo em “déficit habitacional”. Dessa forma, o fato de que o total de déficit habitacional não foi reduzido não pode nos levar, necessariamente, a concluir que o programa habitacional federal tenha sido insignificante para atenuar a trajetória de crescimento do déficit habitacional brasileiro. De tal modo que o ato de olhar simplesmente para o indicador final não revelaria, portanto, a parte mais importante da história recente da formação das condições habitacionais brasileiras: a mudança na composição do indicador, que coincide historicamente com o início do programa MCMV. 



Portanto, algo bem mais razoável do que cravar a completa ineficácia do malfadado programa MCMV e de quaisquer outros que se pareçam com ele seria levar a sério a hipótese de que seus possíveis efeitos positivos na redução do déficit habitacional teriam sido compensados por um aumento da incidência dos preços do aluguel no orçamento familiar – algo que, ainda que possa ter relação de causalidade com o programa federal, é atravessado por determinantes complexos (econômicos, fundiários, etc) que não necessariamente estão sob o controle de uma política habitacional. Mas mais do que isso, como também bem pontuado nas críticas de Tainá Pacheco, a constatação desta mudança da composição também não deve nos levar necessariamente a algum tipo de avaliação positiva ou negativa sobre o programa. O maior desafio, que tira o economista da sua zona de conforto, é o de realmente buscar compreender alguns pormenores do debate sobre desenvolvimento urbano e as políticas urbanas no Brasil, desenvolvendo uma clareza sobre como a incidência dos programas habitacionais federais no indicador de déficit habitacional é bem menos direta e bem menos curto-prazista do que se pode parecer à primeira vista. 


O fato de um economista tão tarimbado publicizar uma abordagem tão pouco criteriosa sobre o tema não pôde deixar de causar certo espanto, deixando uma impressão negativa nos espectadores da discussão. A meu ver, vale a menção ao episódio porque ele explicita uma atitude bastante inconveniente e muito rotineira à comunidade de economistas brasileiros: a disposição a comentar de modo extremamente assertivo todo e qualquer tipo de assunto como se especialista fosse. E porque, para além de sinalizar este tipo de atitude “colonizadora” de debates que é muito típica aos economistas, a abordagem intempestiva de Pessôa para o tema surge como uma interessante evidência anedótica para o modo como os economistas brasileiros (não) compreendem aquilo que é comunicado pelo indicador de déficit habitacional. 


Elementos que dificultam a interpretação


A definição de senso comum do problema das necessidades habitacionais brasileiras como sendo decorrente de um “déficit” no/do parque habitacional brasileiro tende a levar as pessoas que não são especialistas no assunto a formar uma ideia prévia que não condiz muito bem com aquilo que o indicador realmente pretende comunicar. E a solução que via de regra é atrelada à política habitacional no Brasil – isto é, a oferta de subsídios para a produção de novas unidades habitacionais – não ajuda a resolver este ruído de comunicação. Tudo isso acaba, então, resultando numa grande confusão nos debates públicos e não é nada incomum nos depararmos com má interpretações sobre o tema. 


A mais rotineira delas é aquela que vê o “déficit habitacional” como se ele fosse uma medida da quantidade de pessoas que não têm um teto para morar. Foi assim, por exemplo, que em 2018 o então candidato à presidência pelo PSOL e recentemente candidato a prefeito de São Paulo, Guilherme Boulos, traduziu a questão num artigo escrito para a Folha, ao sugerir que no Brasil tínhamos mais de 6 milhões de pessoas “sem casa”. Algo que, obviamente, induz qualquer leitor que não conheça mais a fundo este debate a imediatamente trazer à sua mente a imagem de pessoas morando em situação de rua – que, diga-se de passagem, infelizmente têm se tornado cada vez mais presente no cotidiano das cidades brasileiras.


A interpretação trazida por Pessôa em sua genérica avaliação do Programa MCMV e exposta pelas críticas de Pacheco, por sua vez, parece errar de outra maneira. Ainda que o economista busque rebater as críticas e estenda mais os seus argumentos na resposta publicada no blog do IBRE-FGV, a impressão que fica é a de que ele desconhece completamente ou pelo menos se apropria muito mal da composição do indicador e por esse motivo não consegue visualizar o cenário em que o impacto do programa habitacional federal é compensado pelo aumento do ônus do aluguel no orçamento familiar ou mesmo pela tendência de mudança na necessidade habitacional da população em função do crescimento populacional ou outras razões demográficas. 


Mas longe deste problema de interpretação ser somente responsabilidade de quem recebe a informação, é preciso que também consideremos o fato de que há todo um contexto de indefinições em torno da produção desta estatística de déficit habitacional que torna qualquer avaliação de programas habitacionais uma questão muito menos autoexplicativa do que pareceria à primeira vista. Há muita controvérsia, por exemplo, em torno da decisão de tomar como indicadores de deficiência do estoque de moradias os dois fatores que mais pesam na definição da ordem de grandeza do indicador: o ônus excessivo do aluguel (com seu critério de 30% do orçamento familiar) e a coabitação familiar, que somados representam 80% das moradias deficitárias de 2015. Outros especialistas chegam mesmo a questionar o conceito como um todo, sobretudo por considerarem a ideia de classificar a carência habitacional brasileira como um “déficit” algo essencialmente e excessivamente redutor. E, na realidade, talvez só mesmo a iniciativa de compor este indicador com a quantidade de domicílios identificados como “moradia precária” na Pnad possa ser considerada como uma decisão que não veio acompanhada de críticas metodológicas muito contundentes.


Em resposta às críticas, a fundação mineira costuma recorrer à velha máxima que clama para que “não matemos o mensageiro” diante de más notícias: se há controvérsias, devemos atribuí-las principalmente à precariedade dos dados sobre condições habitacionais no Brasil – os quais, ao que tudo indica, podem se tornar ainda mais precários diante de mudanças já realizadas ou atualmente em curso nos questionários da Pnad Contínua e do Censo Demográfico. Mas ainda que, sem dúvidas, a insatisfação com a qualidade e a quantidade de dados disponíveis seja um dos raros momentos de absoluta convergência entre especialistas no tema, ela não apaga o fato de que muitas dessas críticas são mesmo direcionadas ao modo como a metodologia desenvolvida pela FJP lida com os dados disponíveis. 


O déficit habitacional como gargalo do desenvolvimento brasileiro


Levando-se em conta que mesmo na conversa entre os especialistas a questão permanece cercada de grandes controvérsias, não pode parecer uma mera coincidência que de tempos em tempos tenhamos que ver surgir nos espaços de debate público interpretações equivocadas sobre aquilo que o indicador deveria estar comunicando. Contudo, os problemas internos ao debate sobre as necessidades habitacionais brasileiras não autorizam esse vício intrínseco à “abordagem fiscalista” de Pessôa e de outros economistas que se proponham a abordar o tema. É preciso ter em mente que debater este assunto é importante não só porque se gasta muito com política habitacional, mas principalmente porque este é um dos gargalos mais fundamentais do desenvolvimento brasileiro, com efeitos sociais e econômicos muito perversos.


Ao invés de simplesmente tomar as informações de déficit como se fossem uma espécie de revelação da “preferência” do brasileiro por morar tal como alguns figurões da tragicômica política brasileira, portanto, seria de bom tom e com resultados muito mais interessantes uma abordagem economista sobre o tema que tenha ciência das razões que mobilizam suas controvérsias metodológicas e que compreenda também as várias diferenças entre a teorização econômica e o modo como esse assunto é abordado no campo dos Estudos Urbanos. Entendo que a comunidade de economistas brasileiros pode trazer uma grande contribuição no debate sobre o déficit habitacional, mas ela passa muito menos pela insistência em denunciar o impacto fiscal das tentativas de solucioná-la e muito mais pelo fato de que este é um fenômeno social e econômico de grande relevância. E se é verdade que o papel do economista é debater a natureza e a causa da riqueza das nações mediante o método científico e o pensamento crítico, me parece uma questão de primeira ordem olhar com maior atenção para o cenário das necessidades habitacionais e para a tendência cada vez mais explosiva do déficit habitacional no Brasil.


***


Algumas referências para entender mais sobre o tema: 


Nota técnica “Desafios crescentes da oferta de moradia”, por Ana Maria Castelo, Carolina Nour e Robson Gonçalves para a revista Conjuntura da Construção – FGV (2017)

Podcast “Caos Planejado #37: Economia urbana e acessibilidade à moradia” (2020), com Tainá Pacheco e Vanessa Nadalin

Podcast “A Cidade é Nossa #24: Casa Verde e Amarela e a financeirização da moradia” (2020), com Raquel Rolnik

Artigo “Déficit habitacional, famílias conviventes e condições de moradia” (2006), por José Eustáquio Diniz Alves, Suzana Cavenaghi para a revista da Associação Brasileira de Estudos Populacionais – Abep 

Relatório técnico “Análise das Necessidades Habitacionais e suas Tendências para os Próximos Dez Anos” (2018), contrato firmado entre a Associação Brasileira de Incorporadores Imobiliários – ABRAINC e a FGV Projetos, coordenado por Robson Ribeiro Gonçalves


Evandro Luis

Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Assessor técnico na Diretoria de Promoção de Política Habitacional da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais e pesquisador associado do Programa INCT 2017-2020 Observatório das Metrópoles.


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