Luta Social em Tempos de COVID-19: Ressignificação do Trabalho de Cuidado
O mundo está passando por um momento único na história: o combate à COVID-19, doença causada pelo coronavírus, e a singular crise provocada em sua decorrência. A maioria dos países teve que mudar seu estilo de vida, suas interações sociais e econômicas - ao menos temporariamente. A pandemia do novo vírus tem imposto desafios sem precedentes aos governos, empresas, famílias, trabalhadoras e trabalhadores. Seu alto poder de contágio introduz um grande desafio às instituições: como aliar a interrupção do contágio com a manutenção de certa estabilidade econômica, visto que com o possível colapso da economia, grande parte da população também poderia ser afetada, principalmente a mais desassistida.
O momento de maior foco na saúde, tal qual o confinamento doméstico, trouxe à tona debates que muitas vezes eram secundarizados em momentos de “normalidade”. De certa forma, foi preciso um choque para que se abrisse espaço à ideias de fora do mainstream. Atenção total tem sido dada aos profissionais que realizam o que a economia feminista chama de trabalho de cuidado: cuidado de nós mesmos, de nossas famílias e de nossas comunidades (Dos Santos, 2020).
O trabalho de cuidado é entendido como qualquer serviço em que a pessoa que o pratica fica em contato direito com a pessoa que o recebe, atendendo a uma demanda ou desejo dessa. Exemplos deste trabalho são o cuidado de crianças e idosos, trabalho doméstico, trabalhos de cuidado de saúde mental e física, trabalho de enfermagem e recepcionistas. Não é difícil perceber que o reconhecimento das trabalhadoras e trabalhadores responsáveis por tal cuidado são essenciais para a superação desta pandemia.
O que não parece ser trivial, contudo, é o reconhecimento do trabalho de cuidado como essencial para a manutenção da vida, da sociedade e da economia, independente do momento em que vivemos. A desvalorização histórica deste tipo de trabalho, refletida pelos baixos salários ou até mesmo a ausência de uma remuneração por eles, é a prova disso. Ademais, são trabalhos realizados majoritariamente por mulheres, pobres, negras e minorias (como, em muitos países, imigrantes).
Os estudos feministas e de gênero defendem que as atividades relacionadas à chamada economia do cuidado constituem também trabalho, uma vez que, além de prover bem-estar, elas implicam custos de tempo e energia para aqueles que as desempenham, bem como custos (ainda que não monetários) também para aqueles que o recebem.
A literatura feminista atribui várias razões para tal desvalorização do trabalho do cuidado. Numa sociedade patriarcal como a nossa, o viés de gênero dentro destes serviços poderia por si só explicar a sua desvalorização. Para além disso, contudo, a característica dos “clientes” destes serviços e a “sacralização do cuidado” também podem influenciar os baixos salários. Primeiramente, o trabalho de cuidar geralmente envolve ajudar aqueles que não têm recursos para pagar por seus próprios cuidados: os jovens, os doentes e os pobres. Adicionalmente, a crença de que o “amor e o cuidado” não devem ser comodificados pode, ironicamente, levar a baixos salários -- para não dizer sobre a inadequação da suposição por grande parte dos economistas de que o “homus economicus” é racional e individualista (England e Folbre, 1999).
Por fim, existem fatores notoriamente de gênero e raça na divisão do trabalho do cuidado. Historicamente, pela construção das mulheres como indivíduos “do lar”, além da construção da “maternalidade” colocaram as mulheres como responsáveis “naturais” por tais trabalhos. Para além do trabalho doméstico, tal divisão é explícita no mercado de trabalho a partir, por exemplo, dos dados da formação em enfermagem. 3 em cada 4 profissionais formadas em enfermagem são mulheres, enquanto em medicina as mulheres apenas recentemente alcançaram a metade. Mais que isso, as especializações na área de medicina com maior remuneração são majoritariamente masculinas, como é o caso de cirurgia, enquanto as mulheres são maioria em especializações mais ligadas ao “cuidado” como pediatria e atenção básica. No combate à Covid-19, as enfermeiras são as profissionais com maior exposição ao vírus.
A divisão racial no trabalho de cuidado também é nítida e traz à tona um processo histórico de segregação racial e herança escravocrata. Das 6 milhões de trabalhadoras domésticas no Brasil apenas 3 em cada 10 possui carteira assinada e 80% são negras. Essas profissionais são sujeitas à baixa remuneração, muitas vezes sub remuneração, grande instabilidade e, durante a crise sanitária, são muitas vezes expostas às doenças que podem ser trazidas pelos patrões. São também profissionais que cumprem dupla jornada e, além da baixa remuneração em seus ofícios, são responsáveis pelo trabalho doméstico de suas próprias residências, sem remuneração. O trabalho em casa, além disso, se intensificou durante a pandemia com a suspensão das aulas escolares e demais atividades.
As pessoas ligadas à economia do cuidado querem, em primeiro lugar, o enfrentamento da pobreza em que se encontram, alcançado por políticas de transferência de renda. Mas, precisam de mais que isso: elas querem romper com o legado histórico da dominação, que tem a dependência econômica como elemento fundamental para a sua manutenção. Precisam de uma remuneração justa e condizente com o valor de seu trabalho.
A mudança no ritmo e forma de vida imposta pela pandemia do novo coronavírus trouxe ao debate essas reflexões, que devem ser extrapoladas para além dessa crise. Precisamos de saídas para o momento mas também mudanças estruturais no “mercado” da economia do cuidado, que diminuam desigualdades e acabem com a subvalorização deste trabalho, essencial à sociedade. Por um lado, emergencialmente, precisamos de uma valorização dessas trabalhadoras e trabalhadores, com bônus na remuneração, como tem sido visto em alguns países, elevando os pagamentos de profissionais da saúde e demais prestadoras e prestadores de serviços essenciais que continuam funcionando durante a quarentena, inclusive, em alguns casos, de trabalhadoras domésticas. Por outro, precisamos enfrentar o debate pelo fim da sub remuneração dos trabalhos da economia do cuidado para combater a desigualdade estrutural na qual ele é inserido que, consequentemente, agrava as desigualdades de gênero e raça já exuberantes em nossa sociedade. Apesar dessa importância fundamental, o trabalho de assistência permanece pouco estudado na economia convencional e subvalorizado como parte do funcionamento da sociedade.
Texto produzido pela Equipe do Desajuste após uma reunião de discussão sobre o tema da Economia do Cuidado em um contexto de pandemia. O texto foi inicialmente publicado em nosso Facebook.
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