Banco Central e Política Monetária no Brasil: Como funciona?, por Pedro Romero


Para compreender os detalhes desse processo, é preciso analisá-lo em etapas.



Figura 1.



Etapa 1: O funcionamento do sistema de pagamentos e as reservas interbancárias



Diariamente, várias operações financeiras são realizadas em tempo real, o que determina um fluxo constante de pagamentos entre as instituições financeiras, o Banco Central e os cidadãos que detêm contas bancárias. Para funcionar, essa estrutura é sustentada por um sistema que, sob coordenação do Banco Central, conecta todos os bancos comerciais e permite o fluxo de dinheiro entre eles por via eletrônica. A ideia é a seguinte: o Sistema de Transferência de Reservas (STR) exige que todos os bancos comerciais tenham, eles próprios, uma conta no Banco Central. Nessas contas são depositadas as chamadas reservas bancárias, uma proporção dos depósitos bancários feitos por correntistas de cada instituição que não é utilizada para fornecimento de crédito. As reservas bancárias servem para que os bancos possam realizar transações entre si e com o Banco Central, o que precisa, por lei, ocorrer por meio da operacionalização das contas mencionadas. 

 


Figura 2. O STR é um ambiente eletrônico que conecta o Banco Central aos bancos comerciais. Para participar desse sistema, os bancos comerciais devem possuir uma conta no Banco Central.



Há duas razões para que os bancos comerciais demandem reservas: (i) a necessidade de cumprir com o depósito compulsório, uma proporção de reservas em relação aos depósitos à vista que o Banco Central exige dos bancos comerciais para fins de estabilidade financeira; (ii) a necessidade de recursos para realizar e liquidar as transações diários entre os bancos


O sistema interbancário de reservas permite o bom funcionamento do sistema de pagamentos: os bancos comerciais podem realizar transações em tempo real sem se preocupar com o descompasso temporal existente entre o dinheiro que entra e o dinheiro que sai. Por causa da rapidez e da quantidade desses pagamentos, a liquidez dos bancos comerciais tende a variar ao longo do dia: algumas instituições podem ter mais reservas do que o necessário para cumprir com seus pagamentos, outras podem ter necessidade de mais reservas. Durante o dia, os bancos comerciais podem acessar as reservas compulsórias para pagamentos e liquidações, mas, ao fim do dia, essas reservas compulsórias precisam estar reestabelecidas. Pode ocorrer, no entanto, uma falta ou um excesso generalizado de reservas. Por exemplo, os bancos podem expandir a oferta de crédito e não terem reservas suficientes para cumprir com os requisitos mínimos do depósito compulsório no fim do dia. Ou, por outro lado, uma contração do crédito faz com que sobrem reservas disponíveis para além do necessário com pagamentos interbancários e depósitos compulsórios.  Em qualquer uma dessas situações o Banco Central pode e deve atuar. A etapa a seguir explica o porquê. 



Figura 3. Os bancos comerciais utilizam as reservas para os depósitos compulsórios exigidos pelo 

Banco Central e para liquidar transações diárias entre si.



Etapa 2: A atuação do Banco Central no interbancário e a política monetária


Vimos que os bancos comerciais demandam reservas bancárias por algumas razões específicas. Porém, na falta ou no excesso generalizado dessas reservas, quem é capaz de gerir essa oferta? A resposta: o Banco Central. 


  • Como? 


Há algumas formas do Banco Central atuar no nível das reservas bancárias. Uma opção é, por exemplo, alterar o percentual do depósito compulsório dos bancos comerciais no Banco Central. Outras formas são a compra e a venda de títulos públicos e as operações compromissadas e operações compromissadas reversas, que enxugam ou injetam liquidez na economia. No caso de um excesso de reservas, por exemplo, o Banco Central vende títulos emitidos pelo Tesouro Nacional aos bancos comerciais, que recebem uma remuneração via juros como contrapartida à abdicação das reservas. 

 

  • Por quê?

 

O Banco Central precisa atuar para regular a quantidade de reservas bancárias porque este estoque está diretamente associado à sua função enquanto estabilizador da economia. Para manter a inflação sob controle, o Banco Central determina uma meta de curto prazo para a taxa básica de juros, a taxa Selic, que precisa ser atingida. Acontece que a taxa Selic também é a taxa de juros que rege o sistema de reservas interbancárias. Isto é, é com base nela que as reservas compulsórias dos bancos comerciais no Banco Central são remuneradas. Por causa disso, o excesso ou a falta de reservas no interbancário afeta diretamente o valor da Selic, desviando-a da meta determinada pelo Banco Central. Supondo que, diante de um desequilíbrio no mercado interbancário de reservas, o Banco Central resolva não agir: se há excesso de reservas, os bancos comerciais reconhecem um excesso de liquidez. Como parte dessas reservas não é remunerada, há um custo de oportunidade e os bancos irão procurar opções rentáveis para este excedente. Como resultado, a taxa de juros cobrada pelos bancos para repasse dessas reservas tende a cair, até que seja esgotado esse excedente. Nesse caso, esse movimento empurraria a Selic para baixo da meta. Se há escassez de reservas, a falta de liquidez elevaria as taxas de juros cobradas pelos bancos, desviando a Selic para cima da meta. Em resumo, para garantir a meta da Selic, o Banco Central precisa intervir no sistema interbancário de reservas. 



Figura 4. Com o objetivo de garantir a meta da taxa básica de juros, a Selic, o Banco Central atua no mercado de reservas, alterando o compulsório ou comercializando títulos do Tesouro Nacional.



Etapa 3: As consequências da atuação do Banco Central e o papel do Tesouro Nacional



Vimos que o Banco Central precisa utilizar dos títulos públicos para interferir no sistema interbancário de reservas e manter a meta da Selic. Entretanto, desde a vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal em 2002, o Banco Central não pode emitir esses títulos, sendo essa ação uma exclusividade do Tesouro Nacional. O Tesouro Nacional é o órgão responsável pelo orçamento do Estado e pela gestão da dívida pública, fazendo parte do executivo federal (Ministério da Economia). Assim como os bancos comerciais, o Tesouro mantém uma conta no Banco Central, a chamada Conta Única do Tesouro Nacional. Essa conta é responsável por realizar todas as operações fiscais do governo, como a recepção de tributos e o pagamento de salários aos servidores públicos. 


Antes de prosseguir para como o Banco Central consegue - ainda que não emita títulos próprios - garantir o equilíbrio do sistema interbancário de reservas, é preciso ressaltar um ponto fundamental: nos tempos atuais, a institucionalidade entre Banco Central, Tesouro Nacional e sistema bancário é tão complexa e intrincada que os processos cotidianos de gestão econômica do Estado acabam borrando as fronteiras entre o que já estamos acostumados a separar: política monetária e política fiscal. O Banco Central é a autoridade monetária, o Tesouro é a autoridade fiscal, mas, como se verá a seguir, um depende do outro para manter o sistema de pagamentos em pleno funcionamento. 

 

Voltamos, enfim, à questão central: como o Banco Central consegue regular o sistema interbancário de reservas sem poder emitir títulos? A resposta: ele solicita ao Tesouro Nacional que emita esses títulos. Nesse caso, o Tesouro Nacional funciona a serviço da política monetária conduzida pelo Banco Central. Para enxugar o excesso de liquidez, o Banco Central vende títulos do Tesouro para os bancos comerciais. Note que essa venda de títulos do Tesouro Nacional implica necessariamente um aumento da dívida pública, ainda que fundamentalmente associada à condução da política monetária.  



Figura 5. O Tesouro Nacional é a autoridade fiscal do Estado, sendo a instituição autorizada a emitir títulos da dívida pública. O Tesouro também possui uma conta no Banco Central.  Para regular as reservas bancárias, o Banco Central recorre aos títulos emitidos pelo Tesouro Nacional.



Já vimos que o Banco Central não pode emitir títulos e, portanto, não pode retirar liquidez do sistema sem a ajuda do Tesouro Nacional. Mas o que ocorre em uma situação em que há falta de reservas no sistema interbancário? O Banco Central não poderia comprar os títulos da dívida pública emitidos pelo Tesouro, já que ele é o responsável pela política monetária e emite a moeda nacional? A resposta é curiosa. Por um lado, a Constituição Federal proíbe o Banco Central de adquirir os títulos do Tesouro Nacional de forma direta (em termos técnicos, no mercado primário de títulos). O objetivo desta norma constitucional seria impedir que os governos utilizem o dinheiro emitido pelo Banco Central para expandir os seus gastos indefinidamente. Entretanto, a prioridade sempre é garantir que a política monetária seja bem-sucedida por parte do Banco Central. Um exemplo é que, em  2008, dadas as condições específicas de acúmulo de reservas internacionais, entrou em vigor no Brasil a Lei 11.803/2008, que passou a permitir que o Banco Central pudesse adquirir títulos do Tesouro Nacional  “em dimensões adequadas à execução da política monetária”. Ou seja, para fins de manter a meta da Selic, o Banco Central pode adquirir os títulos diretamente do Tesouro Nacional. 



Referências:



DE REZENDE, Felipe Carvalho. The nature of government finance in Brazil. International Journal of Political Economy, v. 38, n. 1, p. 81-104, 2009.



LEISTER, Maurício D.; MEDEIROS, Otávio L. Relacionamento entre autoridade fiscal e autoridade monetária: a experiência internacional e o caso brasileiro. Texto para Discussão, n. 13, 2012.



SERRANO, Franklin; PIMENTEL, Kaio. Será que “Acabou o Dinheiro”? Financiamento do gasto público e taxas de juros num país de moeda soberana. Revista de Economia Contemporânea, v. 21, n. 2, 2017.



TESOURO NACIONAL. Relatório Anual do Tesouro Nacional. Relacionamento entre o Tesouro Nacional e o Banco Central. 2019.



Pedro Romero Marques
Doutorando em Economia na Universidade de São Paulo e pesquisador do Made/USP. Tem interesse nas áreas de Economia Política e Macroeconomia.

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