Privatizar tudo?, por Ligia Toneto

Na última semana as empresas estatais viraram foco do debate político. A pressão sobre a política de preços na Petrobras levou Bolsonaro a trocar a direção da Petrobras de Roberto Castello Branco, do time Chicago Oldies, de Paulo Guedes, por um militar, o General Silva e Luna, gerando rebuliço no mercado se o “neoliberalismo” do governo poderia estar em xeque. Na terça-feira, 23/02, o governo quis provar que seu “raio privatizador” estava bem abastecido, e enviou ao Congresso MP de privatização da Eletrobras. Ler algumas colunas da última semana poderia trazer dúvidas se estamos revivendo a década de 90. Para alguns analistas, mais fiéis aos manuais que à realidade do país, estaríamos diante do “pecado capital” do controle de preços e da incapacidade do governo de gerir empresas. Queremos aqui debater esses dois argumentos, nos livrando de verdades absolutas.

Como funciona, afinal, a política de preços de combustíveis no Brasil? 

Atualmente - desde o governo Temer - a Petrobras tem como política de preços a Paridade de Preços Internacionais (PPI), que busca alinhar os preços domésticos com os preços externos. Isso porque, apesar do Brasil produzir boa parte de óleo cru que seria consumido, nem todos os derivados que consumimos são produzidos aqui. Ainda, nossas refinarias têm especialidades, o que faz com que o Brasil importe alguns derivados e exporte outros. Dessa forma, tanto pelo que consumimos aqui ser uma “mistura” de combustíveis domésticos e importados, quanto por cada vez mais produtores importarem diretamente derivados, os preços internacionais são determinantes dos preços internos.

Vale fazer um parêntese de que nos governos Lula e Dilma o parque de refino brasileiro passou por uma grande expansão e adaptação. Sobretudo após a descoberta do pré-sal, as refinarias brasileiras que majoritariamente refinavam óleos leves - importados - passaram a ter maior capacidade de refino de óleos mais pesados - produzidos domesticamente - como forma de integrar mais a cadeia produtiva dentro do território nacional. Isso não significa que o Brasil, necessariamente, produziria absolutamente tudo que consome, mas havia um projeto para diminuir a vulnerabilidade e  aumentar o valor agregado da produção, uma vez que derivados são mais caros que o óleo cru. 

Essa expansão do refino também criava condições para que a Petrobras, caso necessário, suavizasse a flutuação dos preços. E por que isso faz sentido e não seria um “pecado capital”? Em primeiro lugar, porque os dois principais determinantes dos preços dos derivados em refinaria são o preço internacional do petróleo e a taxa de câmbio. Duas variáveis absolutamente instáveis. Por exemplo, no ano passado, no primeiro dia que ficou marcado pelo “circuit breaker” do iBovespa, os preços do petróleo despencaram 30% (em um dia!). Menos de um mês depois, os preços subiram 17%, também em um dia. Já a moeda brasileira está entre as mais voláteis do mundo: em 11 dos 20 anos 2001 a 2020 o Real oscilou mais do que a média das moedas emergentes. Em segundo lugar, porque o reajuste nos demais elos da cadeia de comercialização dos combustíveis não é imediato. Reajustes muito bruscos e rápidos acabam impactando de maneira diferente os elos da distribuição e da comercialização na bomba. Existem margens que são aplicadas que captam um pouco dessas mudanças, mas alterações muito  bruscas de preços podem prejudicar esses outros elos. E pior, são outros os trabalhadores que arcam diretamente com esses custos, como é o caso dos caminhoneiros, mas também dos motoristas de aplicativos, entregadores, e mesmo dos contratos de transporte público. 

Sem privatizações, uma outra política de preços é possível

Dessa forma, não se espera que haja um controle, mas é desejável que haja uma maior estabilidade dos preços. E isso é possível graças à elevada produção da Petrobras e sua estrutura verticalizada. Como isso funciona? Em um momento de alta dos preços dos derivados, motivada pela elevação dos preços do petróleo, a maior receita com a exportação de óleo cru pode suavizar o efeito sobre os derivados, que não precisam ter seus preços elevados imediatamente. Da mesma forma, no sentido inverso, uma queda brusca dos preços do petróleo não precisam ser repassadas imediatamente para os combustíveis, que podem suavizar as perdas de receitas com exportação de óleo. Ou seja, a internalização dos custos pode reduzir a volatilidade para o consumidor final no mercado doméstico. Inclusive, porque a larga maioria dos investimentos no setor não são determinados por fatores de curto prazo, mas sim, por decisões de investimento de longo prazo a partir de descobertas de áreas de exploração e planejamento estratégico. Já há pouca margem de manobra no curto prazo.

Longe de controle de preços, esta política age no sentido de reduzir os impactos das flutuações na economia e permite o planejamento de investimentos de longo prazo. Assim, os acionistas de longo prazo recebem maior remuneração, estando menos sujeitos a quedas abruptas - porque é claro, se o preço pode explodir e super remunerar os acionistas de curto prazo, ele também pode despencar, gerando grandes prejuízos. O que não significa, de maneira alguma, impedir que os preços domésticos oscilem. Significa  criar um ambiente mais estável, inclusive uma medida possível é a exigência de que a Petrobras apresente sistematicamente previsões de cotações internacionais para justificar seus preços praticados. 

Mas o que essa política tem a ver com as privatizações? O plano estratégico da Petrobras, desde o governo Temer, mudou para se focalizar em Exploração e Produção (E&P) de óleo cru, transferindo para um plano de privatizações 8 das 11 refinarias da Petrobras. Acontece que para uma refinaria individual, privatizada, é impossível aplicar essa política de suavização dos preços, sendo impraticável qualquer preço que não o internacional. Dessa forma, para que seja possível colocar em prática o plano de privatizações, é necessário que a PPI seja seguida. O que é, na prática, perder um instrumento de política. 

Mas, além dos preços, existem outros problemas. Um deles é que o mercado de combustíveis é regionalizado. Ou seja, ainda que com a venda das refinarias se alcance uma diversidade a nível federal, não necessariamente isso implicará em um mercado mais competitivo, uma vez que as refinarias possuem praticamente um monopólio regional, dados os elevados custos de transporte. Isto é, pouca diferença faz se uma refinaria que está no Rio Grande do Sul é de uma empresa, uma refinaria em Minas Gerais é de outra e uma terceira no Rio Grande do Norte é ainda de outra empresa - o fornecimento continuará local. Dessa forma, a privatização das refinarias pode culminar em trocar um monopólio nacional, de uma empresa estatal, com cadeia de produção integrada, por pequenos monopólios privados regionais. 

Em síntese, ter uma política de preços planejada não necessariamente é um “controle”, muito menos um “pecado capital”, tampouco privatizar garante em todos os casos um mercado mais eficiente e competitivo.

            Eficiência e outros incentivos: estatais nem sempre são problemas, podem ser solução

Partimos então para o segundo argumento: “empresas estatais são necessariamente ineficientes”. A Petrobras desenvolveu a tecnologia mais moderna do mundo para a exploração de petróleo em águas profundas. Entre 2002 e 2016, as maiores estatais brasileiras apresentaram lucro líquido de R$806,6 bilhões. A Caixa Econômica Federal possibilitou o pagamento de Auxílio Emergencial a quase 70 milhões de brasileiros em 2020, em meio à pandemia, e paga o Bolsa Família para quase 15 milhões de brasileiros. A Eletrobras permitiu o estancamento da crise energética no Amapá, que ficou praticamente um mês sob apagão, e tem a energia gerida por uma empresa privada. O Correio não só é a empresa mais enraizada pelo Brasil todo, como possibilita o transporte além de cargas e mercadorias, de insumos, que são usados na saúde, por exemplo - e está se desenvolvendo para transportar vacinas. Enquanto isso, empresas privadas como a Vale, por exemplo, foram responsáveis pela tragédia de Brumadinho em 2019. Isso para dizer que não necessariamente ineficiência é uma característica inerente às estatais. Evidentemente que estatais podem ser ineficientes, mas não é, de maneira nenhuma, uma regra. 

Além disso, existe uma escolha social que está para além da eficiência. Por um lado, as estatais cumprem um papel no investimento em negócios mais arriscados, com retorno de mais longo prazo, elevado custo de manutenção e interesse social. Como é o caso de investimentos em infraestrutura, ou mesmo produção de petróleo. Mas também respondem a outros incentivos. Uma empresa privada não investirá se não houver um cenário propício a ter lucro. Por um lado, isso pode significar não investir se a demanda está desaquecida, como é o caso do Brasil. Enquanto isso, o próprio investimento de uma estatal pode puxar o investimento privado. Por outro lado, pode significar não investir se o mercado consumidor não for rentável. Como é o caso de investimentos em serviços de infraestrutura em regiões mais pobres: muitas empresas podem querer investir em saneamento na cidade de São Paulo; poucas provavelmente irão querer investir em uma cidade do interior do Pará. Ou seja, não só as estatais em um momento de crise como o que vivemos podem cumprir um papel de retomar o investimento e reaquecer a economia, dando segurança para os investimentos privados, como garantem que esses investimentos tenham uma preocupação com a infraestrutura social e com os interesses estratégicos do país.

Há ainda, finalmente, que se discutir a vinculação direta e vulgar comumente feita entre empresas estatais e corrupção, em especial no Brasil. Primeiramente, não há nada que indique que a corrupção é um fenômeno exclusivamente brasileiro, latino-americano ou subdesenvolvido como alguns tentam afirmar. A captura de interesses públicos por agentes privados decorre da tensão subjacente entre mercado e Estado em uma economia capitalista, em diferentes níveis e com distintas "qualificações". Da mesma forma que podem ocorrer nas empresas estatais, há também vasta evidência de que pode haver desvios em agências reguladoras. Não é o objetivo deste texto discutir as origens da corrupção, mas o debate sério precisa abdicar de sensos comuns ideológicos que equivalem Estado à roubalheira. Há problemas estruturantes e institucionais  que determinam condições mais ou menos republicanas. É neste sentido que deve ser o esforço de todos aqueles que corretamente condenam práticas corruptas, na construção de um arcabouço  institucional que fiscalize, implemente e garanta uma relação entre governo e setor privado pautada em transparência e moralidade. Da mesma forma, a dita ineficiência do setor público não pode ser tomada como intrínseca da atuação estatal. Incentivos, contratos e reformas que aprimorem a produtividade são urgentes tanto no setor público, como privado brasileiro. Não é então contraditório por princípio que uma empresa estatal seja eficiente, como mostramos que a Petrobras pode ser, ou ainda as universidades públicas, exemplo de excelência em pesquisa e ensino onde não há indícios de roubalheira.

Entre a década de 90 e hoje, o Brasil e o mundo passaram por muita coisa. Tivemos uma série de crises na década de 90. Tivemos a crise energética na transição pros anos 2000, que resultou em apagões, fruto de desinvestimentos no setor elétrico - à época, recém privatizado. Passamos pela crise do subprime, que era tida como a maior crise do neoliberalismo, até a chegada da epidemia do coronavírus. Ainda não passamos, mas estamos vivendo a maior crise da história brasileira. A crise do coronavírus atingiu o mundo em diversas dimensões, e não só ainda não foi superada, como no Brasil ainda foi agravada por anos de políticas de austeridade e por um governo incapaz de responder ao problema sanitário. Sem dúvida, não é um remédio genérico que vai solucionar a crise. Não adianta voltar à mesma receita. E, geralmente, não são cloroquinas nem palavras de ordem simplistas que resolvem crises profundas. Com relação às estatais, a crise hoje parece muito mais de gestão e estratégia do que propriedade; e, na dúvida, melhor que a propriedade seja de todos do que de poucos.





Ligia Toneto

Bacharela em Economia pela FEA-USP, mestranda no IE-Unicamp. Colaboradora do Centro de Estudos Econômicos (CEE) do IREE. Tem interesse em desenvolvimento econômico e desigualdades.




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