Teto de gastos: a jabuticaba ortodoxa, por Lucca Henrique
Como pautar a recuperação econômica após a pandemia do Covid-19 é hoje um dos principais assuntos do debate político-acadêmico em Economia. Muito se discute sobre as possibilidades de uma retomada verde (ver MARQUES, 2020), mas quase toda discussão termina se questionando acerca do papel do Estado nesse processo. Organismos multilaterais tradicionalmente conservadores, como o FMI e a OCDE, já se posicionaram a favor dos gastos públicos como elemento fundamental na condução da recuperação. Isso implica, em alguma medida, repensar o desenho das regras fiscais dos países, como afirma Laurence Boone - economista chefe da OCDE.
A emenda constitucional 95, popularmente conhecida como Teto de Gastos, é atualmente a principal regra fiscal brasileira. Essa regra basicamente determina que o crescimento dos gastos públicos deve seguir apenas a taxa de inflação do ano anterior, fazendo com que não exista crescimento real. A medida tem duas principais motivações: estabilizar a trajetória da dívida pública e incentivar a retomada do crescimento. Para controlar a dívida, o Teto impede o crescimento dos gastos do governo como principal elemento para redução do déficit primário. Para incentivar o crescimento, ela baseia-se na ideia de austeridade expansionista em que o governo e o setor privado competem por recursos e, uma vez que o governo deixa de gastar, o investimento privado virá para suprir essa diferença.
Essa política é considerada por muitos economistas excessivamente restritiva e muitas vezes legitimada em interpretações rasas e incompletas. Discutirei aqui apenas um desses aspectos, relacionado a utilização do Teto como agenda de crescimento e o fato de que, além de descolado da discussão internacional, o Teto se descola também das suas próprias justificativas e bases teóricas. Como mencionado, a EC 95 se sustenta na ideia de austeridade expansionista, ou seja, que políticas contracionistas adotadas pelo governo teriam, na realidade, efeito expansionista de curto prazo. A priori, isso já parece um contrassenso, mas existe uma explicação lógica por traz.
Alberto Alesina, economista italiano que morreu esse ano, foi o pioneiro em desenvolver a hipótese da austeridade expansionista, a qual deriva do raciocínio de que os agentes privados moldam suas decisões de investimento baseadas em expectativas da situação fiscal do país. Em outras palavras, uma contração fiscal serviria como um sinalizador de que no futuro as contas públicas estarão "em ordem", sendo superavitárias, e necessitando menos de novos tributos. Assim, os agentes privados decidem investir hoje e aumentam a renda total.
Esse mecanismo foi sarcasticamente chamado de "fada da confiança" pelo nobel em economia Paul Krugman. Esse termo elucida bem o caráter um tanto quanto fantasioso da hipótese, ou seja, de que os agentes, esperando uma melhor situação fiscal no futuro, melhoram suas expectativas e realizam mais investimentos hoje. O mecanismo desconsidera o papel, por exemplo, das expectativas de venda no processo de investimento, o qual determina que, para uma empresa produzir e investir mais, a variável que ela leva em conta é a expectativa de demanda futura e não a expectativa de déficit governamental futuro.
Todavia, assumindo que, como hipótese, políticas de austeridade podem de fato influenciar as expectativas e decisões de investimento, é importante verificar se, na prática, esse canal existe. Alesina e Ardagna, economistas defensores dessa teoria, publicaram um ensaio em 2009 no qual estudam 107 episódios de austeridade e verificam a existência ou não de impactos expansionistas de curto prazo. O estudo encontra que, do total de casos, apenas 26 foram considerados expansionistas. Daí é possível perceber que, embora possa existir, a austeridade expansionista não parece servir como uma lei geral.
Dessa forma, um ponto importante para se levantar agora é que a fada da confiança, embora possa atuar, não necessariamente vai. Essa é a primeira grande inconsistência interna da austeridade brasileira, a qual se vende como mecanismo ideal para resolver os problemas fiscais do país e como instrumento universal que sempre irá funcionar, muito embora nem seus formuladores tenham sido capazes de provar sua universalidade.
A segunda questão relevante ao se discutir essa hipótese é quando a austeridade expansionista teria maior probabilidade de acontecer. Jayadev e Konczal, dois economistas críticos dessa ideia, elaboraram um artigo em 2010 analisando os casos de sucesso do estudo feito por Alesina e Ardagna. Esse artigo mostra que dos 26 casos de sucesso apresentados, apenas 2 foram realizados no meio de uma recessão. Esse resultado parece um tanto quanto natural quando se considera que os agentes privados, para investirem, analisam suas expectativas de demanda futura. Uma economia em recessão e com alto desemprego apresenta uma baixa demanda, o que não cria incentivos para investimentos mesmo que o governo sinalize melhora fiscal no futuro.
É nesse contexto que surge o Teto de Gastos. A medida foi aprovada em 2016, quando o Brasil enfrentava uma das piores crises da sua história. Mesmo que a política tenha apontado para uma melhora fiscal do país, a situação econômica não cria as condições necessárias para que os investimentos sejam realizados e tenham o impacto expansionista defendido. Esse cenário pode ser claramente observado no Brasil que agora enfrenta a mais lenta recuperação de sua história.
Mesmo com o Teto, a economia cresce a taxas muito baixas e inclusive incapazes de recuperar o nível de atividade pré-crise. Os economistas que defendem o Teto de Gastos parecem realmente acreditar em fadas e que o Brasil teria a sorte de ser um dos casos que a austeridade seria expansionista em plena recessão. Assim, o Teto de Gastos pode ser visto como a verdadeira jabuticaba da ortodoxia econômica brasileira, a qual acredita com todas suas forças políticas que o Brasil é capaz de ir contra as evidências fornecidas pela própria teoria que eles dizem se apoiar.
Por fim, vale ressaltar que o debate internacional, como mencionado no início, já superou essa ideia de defesa da austeridade como um fim nela mesma. A crise do Covid-19 apenas jogou luz a um debate que já está amadurecendo há anos. A defesa do Teto se descola do que se discute hoje como agenda de recuperação e crescimento econômico e, ao limitá-los, o Teto também dificulta seu primeiro objetivo e torna inócua a redução de gastos para controle do déficit e da dívida, uma vez que a receita depende do PIB. Além disso, o aprofundamento da crise econômica em 2020 cria um cenário ainda menos propício para nossa jabuticaba fiscal funcionar. O Teto ignora completamente todos os papéis que o Estado tem em uma democracia, como seu papel anticíclico e de proteção aos mais vulneráveis, principalmente em meio a uma pandemia. A mensagem que se pode tirar disso é que na economia tudo é possível, mas nem tudo é provável. O Teto parece querer tornar lei -ou melhor, emenda constitucional- o quase impossível.
Referências
Alesina Alesina & Silvia Ardagna (2009), “Large Changes in Fiscal Policy: Taxes Versus Spending”: NBER Working Paper No. 15438. Disponível em: <https://www.nber.org/papers/w15438>.
JAYADEV, Arjun; KONCZAL, Mike (2010). The boom not the slump: The right time for austerity. ScholarWorks at UMass Boston. Disponível em: <https://scholarworks.umb.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1026&context=econ_faculty_pubs>.
Marques, Pedro Romero (2020). As propostas internacionais para um Green New Deal: pautando a transição para uma economia verde no Brasil pós-pandemia (Nota de Política Econômica 003). MADE/USP. Disponível em: <https://madeusp.com.br/publicacoes/artigos/as-propostas-internacionais-para-um-green-new-deal-pautando-a-transicao-para-uma-economia-verde-no-brasil-pos-pandemia/>.
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