Daqui 20 anos, 30% dos carros serão elétricos graças ao Estado, por Matias Cardomingo
Quando a Ford anunciou que estava de saída, o debate sobre a desindustrialização brasileira rapidamente voltou à cena. Diversas análises entraram em campo, partindo do velho conhecido “custo Brasil & precisamos de reformas”, até a falta de projetos de desenvolvimento local com auxílio do Estado e de investimentos em infraestrutura física e capacidade humana. Contudo, há um outro elemento fundamental sobre as motivações para que a empresa optasse por uma reestruturação global ao custo de US$11 bilhões: a velocidade exponencial com que a indústria automobilística tem se alterado.
O exemplo recente mais simbólico de demonstração de poder por essa nova indústria foi um tweet de Elon Musk. O bilionário sul-africano de 49 anos declarou em sua página (e depois apagou) que apoiaria golpes de Estado contra governos que se opusessem a seus planos, se referindo à Bolívia. Musk fundou a Tesla em 2003, começou a produção de carros 7 anos depois e hoje sua companhia vale mais que as três outras montadoras centenárias juntas: Fiat (1899), Ford (1903) e GM (1908). A valorização meteórica deve-se ao fato de sua empresa ter consolidado a posição de maior produtora de veículos elétricos (VE) do mundo, dos 7 milhões em circulação, nada menos que 1 milhão foi produzido pela Tesla. Em segundo lugar está a BMW, tendo produzido apenas metade disso.
Ser a maior vendedora de carros elétricos, contudo, não deve ser visto como uma fotografia do sucesso, mas sim como a possibilidade do filme que está por vir. Afinal, apenas o conjunto das marcas da GM vendeu mais carros em 2019 do que o total de VE em circulação. A questão está justamente na direção tomada pela indústria, que será cada vez mais elétrica e não baseada na queima direta de combustíveis fósseis. Para se ter dimensão da velocidade da transição, estima-se que os VE saltem de 2,7% das vendas de veículos para 58% em 2040, enquanto a frota deixará de representar apenas 0,1% do total para atingir 31% no mesmo período.
É evidente que nenhuma mudança dessa dimensão pode emergir da livre interação entre consumidores e empresas através do mercado. Pelo contrário, ela só é possível porque os principais governos ao redor do mundo estão moldando um novo setor automobilístico na busca por reduzir a emissão de gases de efeito estufa e atingir metas climáticas. Hoje (e provavelmente pelas próximas décadas) a corrida por carros elétricos é liderada pela China, que apresentou uma política consistente para o setor desde 2009, em meio aos planos de recuperação da crise financeira. Com isso, sua participação no mercado de VE deixou de representar 11% do total em 2011 para chegar a 54% em 2019.
Inicialmente, o governo chinês estabeleceu um esquema de incentivos em dois níveis: um nacional e outro regional, dando liberdade para que o modelo de negócios fosse decidido pelo governo local. Em Shenzen, por exemplo, o governo optou por subsidiar tanto veículos individuais, quanto de transporte coletivo, enquanto em Hangzou optou-se apenas pelo último. Desse período emergiram mais de 400 empresas, poucas delas eram efetivamente rentáveis e se apoiavam mais nos subsídios do que em sua capacidade própria (algo como a Ford por aqui), mas outras prosperaram. Uma das mais bem sucedidas foi a BYD, de Shenzen, inicialmente uma empresa de baterias, que aderiu ao ramo de VE ao comprar uma montadora estatal em 2003. Chegou a figurar como a principal fabricante de carros elétricos, abriu uma fábrica na cidade de Campinas (SP) em 2015 e é cotada por João Dória (PSDB) para assumir a fábrica da Ford em Taubaté (SP), fechada esse ano.
Contudo, após US$60 bilhões gastos na política de subsídio ao longo de dez anos, o governo chinês optou por seguir o modelo californiano de créditos estabelecido no Programa por Veículos de Emissão Zero (ZEV na sigla em inglês) e criou sua Política de Crédito Dual. Nesse desenho são estabelecidas metas de produção de carros elétricos (12% neste ano e 18% em 2023) e metas para eficiência energética. Montadoras capazes de superar essas metas podem ou vender seus créditos para aquelas que não cumpriram, ou reter seus títulos, sofrendo com uma redução de seu valor a uma dada taxa. Além de estabelecer um mecanismo de mercado para regular o avanço da indústria, o governo também permitiu que empresas estrangeiras sem vínculo com o país possam se instalar e aproveitar do incentivo. O mecanismo parece ter alterado os planos da Volkswagen e da GM para produzir uma parcela maior de seus VE no país, enquanto a Tesla construiu sua primeira fábrica fora dos EUA – em Shangai, no ano de 2019.
O modelo chinês de transição também tem sido mais efetivo que o americano com relação ao consumo. Na verdade, considerando os três principais mercados de EV, os EUA figuram como o menor de todos: enquanto os americanos consumiram 328 mil carros elétricos em 2020, na Europa foram vendidas 1,2 milhões de unidades e na China 1,3 milhões. Não à toa, a gestão Biden está estabelecendo uma agenda de diálogo com as principais montadoras para correr atrás do prejuízo. Afinal, se essa desvantagem não fosse suficiente, o novo governo também assume após um período de ofensivas de Donald Trump para garantir o protagonismo da indústria de óleo e gás. Além de investir em obras de infraestrutura como o oleoduto com o Canadá, Trump também entrou na justiça para reverter a política do governador da Califórnia, Garvin Newsom, que estabeleceu 2035 como o limite para a venda de veículos à combustão.
Como o Estado é o elemento fundamental para determinar o futuro desse mercado, as montadoras Fiat, GM e Toyota endossaram o processo iniciado por Trump. O apoio tratava mais de manter boas relações com o governo americano, do que de fato acreditar que o rumo da indústria poderia ser alterado. Afinal, agora que os ventos mudaram novamente na gestão Biden, a GM já estava pronta para anunciar um plano de investimentos em VE de US$ 27 bilhões, além da meta de fazer com que 40% das vendas nos EUA em 2025 seja de carros elétricos, atingindo 100% em 2035.
A efetiva transição para veículos elétricos dependerá de uma visão estratégica capaz de criar a infraestrutura condizente, como a provisão de postos de recarga, mas também um rearranjo do próprio sistema produtivo. Se já estivéssemos em níveis mais avançados da eletrificação durante a escassez recente de micro condutores - devido à elevação da demanda por televisores, computadores e videogames na pandemia -, o impacto sobre a indústria automobilística teria sido ainda maior, devido à maior dependência da parte eletrônica nos EV. Hoje, os custos com chips para veículos elétricos são três vezes maiores do que para veículos movidos a óleos combustíveis.
Além disso, é fundamental que toda a estratégia esteja calcada na noção de transição justa, tal como proposto pelos socialistas democratas estadunidenses na Convenção 109, que estabelece as bases para um projeto de Green New Deal. Pensar a dimensão da justiça ambiental exige também entender os custos de requalificação da mão de obra deslocada de seus postos de trabalho, assim como os impactos desiguais da mudança climática. É preciso garantir que o processo de destruição criativa, inerente à inovação, não acabe apenas por perpetuar desigualdades. Como diz Emicida, “pra que amanhã não seja um ontem com um novo nome”.
De uma forma ou de outra, isso novamente só será possível com uma ação do Estado que seja capaz de moldar o futuro através de planejamento e articulação do setor público e privado. Esse setor é apenas mais um exemplo da relevância do papel estatal na transição ecológica necessária para os próximos anos. Para quem se preocupa com a elevação no consumo de energia, é interessante saber que a previsão para o aumento da demanda em decorrência dos carros elétricos é de 5% em 2040. Ainda que elevado, pode ser absorvido de maneira menos agressiva ao meio ambiente se feito de forma planejada e coordenada. Não há como escapar, só nos resta encarar os desafios à altura que estão.
Muito bom!
ResponderExcluirArrasou, Matias!
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