Sociedade Empreendedora ou Sociedade da Destruição (Criadora?), por Giuliana Facciolli
Desde o baque causado pelos efeitos da paralisação da Covid-19, muitos setores da economia depositaram suas esperanças em processos de automação, digitalização, monitoramento, fornecimento de EPIs e, principalmente, na descoberta de uma vacina. Mais do que nunca, existia o reconhecimento de que a saída da crise sanitária, econômica e social provocada pela pandemia iria depender fortemente da capacidade de produção de conhecimento e de novas tecnologias. Inovação era a resposta esperada à crise. A comunidade de pequenas empresas tecnológicas pululou com novas ideias, buscando expandir-se a partir de soluções ágeis - afeitas aos olhos de investidores e\ou passíveis de serem incorporadas por empresas maiores - ou sucumbir diante das adversidades. Os governos, por sua vez, se engajaram em grandes esforços políticos para coordenar inciativas que alocassem recursos adicionais para fomentar a pesquisa e a inovação, mobilizando universidades, instituições de pesquisa e empresas, como também acionando a comunidade científica para definir prioridades de pesquisa adequadas às suas realidades (De Negri & Koeller, 2020).
Mas essas práticas, de forma geral, estiveram muito aquém do desejável no que diz respeito à realidade brasileira.
Uma imagem que permanece é a massa de desempregados e informalmente empregados - que já vinha se avolumando desde a recessão de 2015 - e de empresas encerrando suas atividades, em maior ou menor medida a depender da região. Por outro lado, na tentativa de construir um falso sentimento de perseverança entre a população, tem-se insuflado o discurso empreendedor, repetindo o mote da “crise como oportunidade” incessantemente. Do trabalhador mais qualificado ao comerciante mais precarizado, da empresa mais intensiva em capital tecnológico à startup de alguns poucos estudantes universitários, esse empreendedorismo quer abarcar diferentes setores da economia, tipos de ocupação, níveis de qualificação, de rendimento e condições de trabalho (Abílio, 2020). Projeta seus ramos, muitas vezes oferecendo soluções fáusticas a problemas sisíficos. Mas não se trata simplesmente de estar em dia com métricas financeiras e mentalizar um futuro melhor. Afinal, a questão é agilidade ou morte; adaptabilidade ou esquecimento. Que a crise exige uma espécie de resiliência operacional, que traz a oportunidade de correção de problemas ou de estruturas defasadas, criando bases mais sólidas para a recuperação no momento seguinte é uma hipótese plausível numa situação conjuntural ou mesmo numa análise que abstrai seus efeitos cumulativos: os investimentos em P&D são pró-cíclicos, o que significa dizer que tendem a aumentar em momentos de crescimento econômico e a se retrair durante as crises, principalmente em períodos de crises prolongadas. Neste último caso, as empresas tendem a cortar investimentos em inovações, cujo retorno seria percebido apenas no longo prazo. Portanto, se a ordem das coisas está mais próxima de um contexto de crise permanente - ou, para aqueles que acharem a expressão muito carregada, um contexto de grande incerteza e instabilidade - então a derrota de uns no jogo do mercado pode não significar melhoramento futuro, mas a falência de um projeto que prometia dar vazão à inventividade humana e democratização dos frutos do avanço técnico.
De fato, o enfoque discursivo em atividades inovadoras diz respeito muito mais ao endosso da cultura gerencial do que realmente uma coordenação nacional e contínua de políticas públicas de Ciência e Tecnologia. Perdura ainda a rejeição completa à ideia de que o Estado possa orientar e promover maior autonomia produtiva e tecnológica em setores estratégicos; em lugar disso, temos a redução do dinamismo tecnológico do país, aumentando sua fragilidade econômica e institucional (Leão e Giesteira, 2020). Como apontado em nota técnica do Ipea por De Negri & Koeller (2020), 100 milhões de recursos adicionais foram destinados ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, para o apoio emergencial às pesquisas relacionadas à Covid-19; no entanto, o principal fundo para a pesquisa científica no país - o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) - com um aporte de mais de R$ 4 bilhões, estava com a maior parte dos seus recursos contingenciados (aproximadamente R$ 3,5 bilhões). O orçamento real do fundo, portanto, passou pela pandemia praticamente no mesmo patamar de normalidade do observado no início dos anos 2000. Sob esse aspecto, tal crédito extraordinário não chega nem perto de repor as perdas do fundo nos últimos anos. Ainda de acordo com a nota, surpreende também a ausência de um mecanismo formal e solidamente estabelecido de consulta a cientistas e pesquisadores para acompanhar as medidas de combate ao vírus; o governo brasileiro optou, na prática, pela substituição de profissionais técnicos por militares com pouca experiência na área, para ocupar cargos-chave no Ministério da Saúde.
Em suma, os efeitos líquidos desses problemas indicam que, para uma parte importante da população, a bricolagem empresarial significa brincar de Lego com uma pilha de escombros. Para a ciência nacional, significa contentar-se com tecnologias residuais e de alto custo.
Referências Bibliográficas:
DE NEGRI, F.; KOELLER, P.. Políticas públicas para pesquisa e inovação em face da crise da Covid-19. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10034
ABILIO, LUDMILA COSTHEK. Uberização: a era do trabalhador just-in-time?. Disponível em: http://orcid.org/0000-0002-2332-8493
LEÃO, R.; GIESTEIRA, L. F.. Políticas de Desenvolvimento Produtivo, Tecnológico e de Inovação: a perspectiva da segurança nacional. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/radar/temas/ciencia-tecnologia-e-inovacao/787-politicas-de-desenvolvimento-produtivo-tecnologico-e-de-inovacao-a-perspectiva-da-seguranca-nacional
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