Aspectos Políticos do Pleno Emprego Brasileiro, por Lucca Henrique
Kalecki foi um dos mais importantes economistas no século passado, mas muitas vezes suas contribuições são esquecidas ou subvalorizadas - colocando seu nome como apenas mais um dos muitos pensadores pós-keynesianos. Porém, diga-se de passagem, Kalecki chegou às mesmas conclusões de Keynes alguns anos antes, partindo de uma base teórica distinta, o que faz com que muitos economistas hoje assumam sua teoria como mais interessante que a do próprio Keynes.
Mas para além das rixas entre personagens históricos, Kalecki, que dedicou grande parte da sua obra para a análise da dinâmica capitalista e o entendimento dos ciclos econômicos, desenvolveu, em um de seus escritos tardios, uma extensão do seu pensamento a fim de incorporar um elemento fundamental para a economia: a política. Em seu clássico texto "Political Aspects of Full Employment" [Aspectos Políticos do Pleno Emprego (1943)], Kalecki apresenta de modo claro e sucinto (sim, num texto genial de meras 10 páginas) argumentos centrais para entender a dinâmica da luta de classes e como ela se relaciona com a própria dinâmica cíclica da economia.
Inicialmente, ele parte do denominador comum a vários economistas heterodoxos de que gastos governamentais podem levar a economia ao pleno emprego. Sua pergunta é, então, por que o governo não mantém a economia sempre em um estado de pleno emprego? Se um aumento no emprego e nos salários significa maior demanda de bens produzidos, maior renda total e maiores lucros, porque essa política econômica não é apoiada pelos capitalistas? Para isso, ele provê três explicações. Primeiro, líderes industriais tendem a não gostar de interferências do Estado, sejam elas quais forem. Isso se dá pois, quando o governo se omite, o nível de renda e de emprego é determinado exclusivamente por decisões privadas de investimento. Isso garante um poder de barganha aos capitalistas que podem usar o "estado de confiança" como um coringa a qualquer momento do jogo em que eles desejarem influenciar uma política pública ao seu favor, pois assim melhoraria o "estado de confiança" da economia e aumentaria a renda e o emprego.
Em segundo lugar, ainda que permitam uma interferência estatal, os líderes industriais não gostam das características típicas desses gastos - em investimentos públicos e em subsídios ao consumo. Em relação aos investimentos, os capitalistas têm medo que quando se esgotarem as tradicionais áreas que o investimento público atua - saúde, educação e segurança - o Estado irá se voltar para outras atividades e começar a concorrer com o setor privado. Em relação aos subsídios ao consumo, há um argumento moral e ético no capitalismo, em que você deve ganhar seu pão com seu próprio suor. Assim, subsídios ao consumo seria coisa de quem não quer trabalhar.
O último argumento aponta que a manutenção contínua de um estado de pleno emprego causaria mudanças políticas e sociais importantes que fortaleceriam a classe trabalhadora e mudaria a correlação de forças na luta de classes em favor do trabalho e em detrimento do capital. E nas próprias palavras de Kalecki: "'discipline in factories' and 'political stability' are more appreciated by business leaders than profits'" ['disciplinas nas fábricas' e 'estabilidade política' são mais apreciadas por líderes de negócios que os lucros'] (p. 326).
Apesar da clara contribuição à economia política que esse texto trouxe, por que trazer ele aqui agora? E o que ele tem a ver com o Brasil, como dei a entender no título? Bom, ao chegar aqui já é clara a ligação desses argumentos com o estado da arte do debate econômico no Brasil. As causas da crise que vivemos desde 2015 são muitas e não pretendo discuti-las amplamente. Houve desaceleração econômica internacional, houve esgotamento de boas políticas públicas, houve mau desenho de incentivos, houve descoordenação entre políticas fiscais e monetárias, houve queda no investimento, houve redução de gastos… No final, houve de tudo um pouco - inclusive aspectos políticos.
Logo antes da crise, a taxa de desemprego estava em 4.3%, uma baixa histórica e talvez o mais próximo que chegamos do 'pleno emprego'. Foi também nesse período que a classe trabalhadora se viu mais forte, com mais de 10 anos de governos progressistas no poder, redução única nas taxas de desigualdade e de pobreza e diversos canais de inclusão social, raros na história brasileira. E foi nesse contexto que começou a se fortalecer - novamente, pois lembremos: tudo é cíclico - o argumento em prol da austeridade e das finanças saudáveis.
Começou a se levantar o ponto que os gastos públicos estavam destruindo o "estado de confiança" e que era preciso recuperar as expectativas do mercado. Era preciso que o governo voltasse as suas políticas para aquelas orientadas ao mercado, em especial a tão bradada agenda de reformas. Era preciso reverter a tendência a redução dos lucros (profit squeeze). No fundo, era preciso rebalancear a luta de classes, mas claro, nunca nesses termos. A ridicularização daqueles que recebiam o suporte do Estado - pelo Bolsa Família, por exemplo - como vagabundos que não queriam trabalhar é a ética capitalista na sua forma mais caricata. Visões do Estado brasileiro como um estado burocrático e paternalista apenas reforçavam esse ponto. A criminalização de políticas de assistência social e do investimento público como maus para a sociedade também nos permite fazer pontes diretas com o que Kalecki propunha.
Nesse sentido, uma vez estabelecida essa relação, é difícil não ver os aspectos políticos do pleno emprego brasileiro. As análises feitas por Kalecki parecem encaixar como uma luva na nossa realidade dos últimos 10 anos. A crise, parte integrante do ciclo capitalista, se vê também como uma crise de caráter eminentemente político no Brasil de 2015 e também no Brasil de 2021.
Mas vale salientar que, se Kalecki esteve certo até agora, sua frase de encerramento do texto pode também nos ser útil: "The fight of the progressive forces for full employment is at the same time a way of preventing the recurrence of fascism." [A luta das forças progressistas pelo pleno emprego é ao mesmo tempo uma forma de prevenção contra o ressurgimento do fascismo.] (p. 331). Dessa forma, enquanto o capitalismo democrático for incapaz de lidar com suas contradições de classe interna e fornecer condições dignas de emprego - e no final, o próprio pleno emprego - o perigo do fascismo estará sempre presente e rondando perigosamente a sociedade. Ainda bem que o Brasil não se encaixa nessa história…
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