Outras economias e outras ontologias, por João Vitor Rodrigues
Resenha texto: TIBLE, Jean. Marx indígena, preto, feminista, operário, camponês, cigano, palestino, trans, selvagem. São Paulo: N-1 Edições. Série Pandemia, março/2019.
Jean François Germain Tible, em Marx indígena, preto, feminista, operário, camponês, cigano, palestino, trans, selvagem (2019), busca promover um encontro entre ‘Marx e a teoria marxiana’, com as pesquisas, conhecimentos, ensinamentos e cosmologias dos povos tradicionais da América Indígena/América Latina. Tidos por muitos como ‘povos selvagens’, os povos tradicionais são trabalhados por Tible neste encontro por meio de autores como José Carlos Mariátegui, Davi Kopenawa, Isabelle Stengers, Viveiros de Castro, Claude Lévi-Strauss
Tible nos convida a pensar: “Quais os sentidos de pensarmos-lutarmos com Marx hoje”? Para ele, “existe uma certa obsessão em decretar o fim de Marx (e do marxismo) ”. Marx e sua (s) teoria (s) ainda se encontram, na visão do autor, bastante contemporâneos e importantes para muitos possíveis ‘entendimentos do hoje’. Por outro lado, observando uma certa ‘incompletude’ da obra de Marx, em especial “no vínculo entre sua teoria e suas lutas”, Tible propõe que sejam tomadas novas perspectivas para o marxismo, que sejam, ‘ecoando Oswald de Andrade’, “contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”. Marxismos que façam sentido e que estabeleçam conexões com ‘os muitos mundos’ e com as classes, que ‘ são sempre muitas’.
O Homem e o Mito
Jean Tible, destaca a seguinte passagem de José Carlos Mariátegui em O Homem e o Mito:
O que mais nítida e claramente diferencia a burguesia e o proletariado é o mito. A burguesia já não tem nenhum mito. Tornou-se incrédula, cética, niilista (...) O proletariado tem um mito: a revolução social. Dirige-se para esse mito com uma fé veemente e ativa. A burguesia nega; o proletariado afirma. A intelectualidade burguesa entretém-se numa crítica racionalista ao método, à teoria, à técnica dos revolucionários. Quanta incompreensão! A força dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária.
Se pensarmos que parte da potência do proletariado provém do mito, e este mito ‘é’ a revolução social, temos que este, ao deixar de sê-lo e revelar-se um não-mito, desemboca em desalentos e desesperanças. “Nenhuma das três principais estratégias políticas da esquerda (social-democracia, socialismo dito real, ou processos de libertação nacional) conseguiu alcançar nem de perto os sonhos despertados”.
As “esperanças não-concretizadas” entrecruzadas com todos os nossos problemas em suas ‘concretudes’ revelam e reforçam a necessidade de novas (ou outras) perspectivas. Outros olhares para as mesmas e para novas problemáticas. Se temos um modo de produção que interfere na dinâmica da vida em suas dimensões mais amplas, tornando-se talvez um “agente geológico: Capitaloceno”, se temos “um feiticeiro que não controla mais sua feitiçaria”, a necessidade de outras abordagens, de outras cosmologias, de outros saberes e de outras pesquisas, torna-se latente.
Voltando a Mariátegui, em O Homem e o Mito, temos que
Os profissionais da inteligência não encontrarão o caminho da fé; as multidões hão de encontrá-lo. Caberá aos filósofos, mais tarde, codificar o pensamento que emergir da grande gesta das multidões.
Torna-se também latente “vivificar Marx”,povoá-lo”, e “vivificar as multidões”, as muitas multidões, por vezes “coisificadas”.
O Povo da Mercadoria
O modo de vida dos brancos é diferente dos modos de vida da floresta. As “criações político-cósmicas” dos brancos é diferente das “criações político-cósmicas” da floresta. O termo urihi – referente a terra Yanomami, converge tanto a interpretações de cunho jurídico quanto a interpretações de cunho ambiental, e tanto numa perspectiva física quanto metafísica. A floresta é viva, e habitada por seres humanos, por seres não-humanos e por espíritos que se entrelaçam em um emaranhado dinâmico, que é por sua vez tanto ‘troca’, quanto ‘todo’. Nas palavras do xamã Davi Kopenawa, explicitada por Tible (2019), “é a floresta que nos anima”, e não existiria a dualidade ‘natureza cultura’. “A natureza como domínio isolado, exterior à humanidade, não existe; humano e não-humanos interagem e compõem coletivos”.
Os brancos, ao ver a floresta, enxergariam ‘coisa’. Ao ver ‘vida’, enxergariam ‘coisas-mortificadas’. Seriam, para Kopenawa, “engenhosos, mas ignorantes das coisas da floresta”. Os brancos, ou os “comedores da terra-floresta”, ao exercer esta ignorância, veriam as mercadorias-mortificadas na floresta-vida sem aparentar nisso maiores preocupações, ou mesmo sem maiores reflexões sobre as consequências da exploração da floresta-vida, num pensamento “cheio de esquecimento”.
Este fascínio que é exercido no branco pela mercadoria-coisificada é objeto de denúncia para as cosmologias dos povos da floresta. Este pensamento-prática, por sua vez, estaria alinhado, ou próximo, da “crítica marxiana do fetichismo da mercadoria”. Ao denunciar o fascínio da mercadoria, o fetichismo da mercadoria, por sobre os homens, ‘encontram-se’ a perspectiva do xamã yanomami e a crítica marxiana.
As Ilusões e as Lutas
A mercadoria coisifica o trabalho social humano e gera fascínio ao conseguir escondê-lo. Uma mercadoria especial, a mercadoria ‘dinheiro’, por meio do Estado, é coisificada pela transformação de papel em ouro, num processo antes de tudo,fiduciário. “O capitalismo configura-se num sistema feiticeiro sem feiticeiros, “operando num mundo que julga que a feitiçaria é apenas uma simples crença, uma superstição e por isso não necessita de nenhum meio adequado de proteção”.
As lutas seriam elementos-chave para ‘a proteção’, e as multidões, vastas e múltiplas, seriam candidatas a serem protagonistas de suas próprias lutas e de suas próprias trajetórias. No meio desta multiplicidade, para Tible, “Marx e o marxismo nomearam historicamente o (um) sujeito revolucionário: tratava-se do operário industrial”.
O proletariado, mesmo digno e forte, ‘ocultaria outras lutas’. A relação do capitalismo com o patriarcado, a escravidão e o racismo gerariam uma miríade de lutas e de lutadores muitas das vezes ocultadas pelo símbolo representado pelo operário industrial. Os múltiplos sujeitos, porém, não pôr-se-iam estáticos.
Ao pôr-se em movimento, a luta destes adquire concretude e não mais pode ser ignorada. É também, e sempre foi, vasto e múltiplo o próprio proletariado em sua composição. Uma busca por uma compreensão mais ampla das lutas, dos movimentos e dos sujeitos prescinde de entendê-los como algo estrutural e estruturante.
A Classe é Sempre Muitas ou Um Mundo Onde Caibam Muitos Mundos
“Nas colônias, a infraestrutura econômica é igualmente uma superestrutura. A gente é rico porque é branco e a gente é branco porque é rico. É por isso que as análises marxistas devem ser sempre ligeiramente distendidas cada vez que abordamos o problema colonial”. Famosa citação de Frantz Fanon, explicitada por Tible, que exemplifica a questão apresentada no parágrafo anterior.
Uma abordagem que considere como sendo de caráter estrutural e estruturante as condicionantes das existências é algo imprescindível para a construção de entendimentos comuns dos mecanismos que colocam em movimento estes seres. Esta abordagem teria papel catalisador e emancipatório, no sentido de aumentar a força e o potencial de suas lutas, buscando a redução das desigualdades por meio e a partir das diversidades
O caminho do operário, bem como o caminho do preto, da feminista, do indígena, do camponês, do cigano, de lgbti+, do subalterno é um caminho de luta. Uma conexão dessas lutas, porém, não pressupõe ‘uma iluminação’, mas um giro. Ou seja, um pensar de baixo, e a partir do de baixo.
Na imagem construída e apresentada por Tible, seria importante pensarmos “um Marx na floresta tomando yakoana, se conectando a um antigo protocolo de pesquisa" ou “um Marx no terreiro de candomblé”.
A importância de Marx Selvagem e de Marx indígena, preto, feminista, operário, camponês, cigano, palestino, trans, selvagem mais do que apresentar a robustez e viabilidade de uma possibilidade de junção entre estas diferentes perspectivas e cosmologias, é a de apresentar a ‘necessidade’ da busca por caminhos comuns de luta, perante os desafios das existências.
As citações destacadas entre aspas aqui neste trabalho, salvo expresso contrário, referem-se a TIBLE (2019).
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