Políticas culturais e neoliberalismo, por Victor Plasa
A crise política e econômica enfrentada pelo setor cultural vai além da questão ideológica do governo Bolsonaro; ela faz parte do projeto neoliberal que retomou o controle total da máquina estatal após 2016 e cujo objetivo é desmontá-la, transferindo recursos, possibilidades de atuação e controle sobre investimentos e lucros à iniciativa privada, além de diminuir a regulação de mercados, impostos e normas. Para entender a situação atual da cultura, é preciso analisar sua trajetória a partir do processo de transição da ditadura empresarial-militar para a democracia burguesa. Busca-se identificar o papel atribuído ao Estado nas discussões acerca de sua inserção no setor cultural e o conceito de cultura adotado pelos governos neoliberais entre 1985 e 2002.
Esse recorte temporal é fruto do processo de ascensão do capital monopolista ocorrido ao longo do regime militar e de aumento do espaço para as disputas no campo cultural. Durante a ditadura, o Estado construiu as políticas públicas de cultura sem participação popular, o que contribuiu para o entendimento da presença estatal na cultura como algo necessariamente ruim, controlador e autoritário. Assim, no processo de construção do Ministério da Cultura, levantaram-se duas posições contrárias: uma ligada diretamente a questões sociais e de esquerda, outra ligada aos interesses do capital.
Para os representantes do capital — alguns deles organizados em torno do PMDB —, era importante construir o MinC para garantir os direitos culturais e o sustento dos artistas. Parte dos atores políticos ligados à direita colocavam esta questão como algo complexo demais para ser definido sem um amplo processo de reflexão e debate. Era importante, ainda, que a criação do mecanismo garantisse a ampliação da liberdade de expressão sem burocratizar o setor. Os grupos opostos à criação eram formados majoritariamente por intelectuais e trabalhadores da cultura ligados a visões políticas de esquerda: eles argumentavam que a criação de um ministério seria uma nova forma de controle e de limitação da autonomia que o setor cultural precisava e estava lutando para conquistar. Além disso, a cultura não era vista como algo a ser administrado e a burocratização foi entendida como uma trava para ações culturais; além de gerar novos impostos. Era mais vantajoso ter uma Secretaria da Cultura forte e com muitos recursos, ligada ao Ministério da Educação, do que um ministério independente, com pouca verba, mas com cargos que poderiam ser usados pelos interesses dos segmentos burgueses.
Com a posse de José Sarney, o Ministério da Cultura foi criado sob a justificativa de honrar os compromissos assumidos por ele e por Tancredo Neves, além de criar ferramentas para que a máquina pública se tornasse capaz de acompanhar o crescimento e o aumento da complexidade das questões econômicas, sociais e culturais no processo de transformação do regime. O decreto, contudo, não definia com precisão o âmbito de atuação do ministério, dificultando sua atuação já afetada pela falta de recursos e de pessoal. Por não ter sido fruto de uma construção entre apoiadores e opositores da ideia, o MinC continuou sendo alvo de críticas pelo fato de, no momento de sua criação, o país ainda se encontrar em processo de transição de regime, em que não havia um lugar definido para tal estrutura, especialmente no sentido de evitar que se tornasse uma nova forma de distribuir cargos.
Apesar da fragilidade do Ministério da Cultura, sua criação coloca em evidência o setor, cujos debates passaram a ser cada vez mais frequentes entre a nova esquerda encabeçada pelo PT. No campo da sociedade civil, dos trabalhadores da cultura e da política não-institucional, buscava-se construir bases sólidas e democráticas para o setor; já no Estado, os elementos burgueses definiram quais segmentos se encaixariam no novo Ministério - como foi o caso do lobby dos monopólios de comunicação, que impediu que rádios e televisões educativas ficassem sob jurisdição do Ministério. Segundo Isaura Botelho (2000), a criação prematura do MinC, baseada em premissas alheias às efetivas necessidades naquele momento, em vez de reforçar o prestígio e a consistência da área, foi, ao contrário, fator de desarticulação e desmoralização. O principal motivo do fracasso foi o papel preponderante do jogo da política miúda que descaracterizou conteúdos, reduzindo o debate a uma disputa interna (p. 265).
Durante o governo de Fernando Collor, o Ministério da Cultura foi extinto (haja vista sua situação insustentável), seus funcionários foram colocados em disponibilidade e diversos programas suspensos. A lei Sarney de incentivo fiscal às produções econômicas foi revogada. O governo federal se absteve de investir em cultura durante toda a gestão Collor, deixando as responsabilidades nas mãos de estados e municípios. Apenas em 23 de dezembro de 1991, com a Lei n.º 8.313 — conhecida como Lei Rouanet —, que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura, a relação do Estado com a cultura se modificou. Itamar Franco deu continuidade à retomada cultural com a recriação do MinC, incentivo à Lei Rouanet e nova legislação sobre o audiovisual.
No período final deste recorte, isto é, o governo FHC (1995-2003), a ideia de cultura como um bom negócio chegou a outro patamar. O modelo de relação entre Estado e cultura, pautado pela perspectiva econômica que guiou a atuação do ministro da cultura Francisco Weffort — cuja gestão acompanhou os dois governos de Fernando Henrique —, tem por principal elemento a renúncia fiscal enquanto fator de incentivo ao investimento privado na cultura. Outros aspectos da legislação — como o Fundo Nacional de Cultura — tiveram menor importância nas ações culturais do período, visto que o Estado manteve a postura de não-intervenção, característica da ascensão neoliberal. De um lado, a maior parte dos investimentos neste formato foi realizada por estatais, como a Petrobrás, e em atividades culturais privadas; de outro, empresas privadas, como foi o caso de alguns bancos, aproveitaram a dedução para investir em suas próprias ações culturais. No caso das empresas privadas, havia a redução do imposto sobre o investimento cultural, mas o dinheiro investido nunca saía do grupo, pois acabava sendo direcionado para uma empresa com função cultural, mas pertencente ao mesmo conglomerado, como por exemplo, Itaú e Itaú Cultural.
Conclui-se que as políticas adotadas ao longo do período, desde a criação do Ministério da Cultura (a qual ocorreu sem os debates devidos), tiveram dois elementos centrais: o primeiro foi o mínimo de intervenção estatal possível, evidenciado pela fragilidade estrutural e financeira do MinC, dando prioridade ao fomento cultural por meio da renúncia fiscal, em detrimento de investimento público através de fundos previstos nas leis n.º 7.505/86, Lei Sarney, e n.º8.313/91, Lei Rouanet. O segundo elemento central foi o caráter majoritariamente econômico da cultura, aliado a uma noção de liberdade de expressão geral e rasa, haja vista que apenas grandes empresas possuíam recursos para custear a produção de bens culturais; logo, o potencial econômico, propagandístico e reafirmador dos ideais neoliberais era o critério de factibilidade.
Com isso, nota-se a importância da construção de políticas públicas com ampla participação popular e financiamento público: somente desta forma será possível incentivar a cultura ligada aos trabalhadores, feita por eles e para eles. Assim, o objetivo final do setor pode passar a ser a ampliação da democracia com valorização das ideias, das referências e do trabalho das parcelas subalternizadas da população.
Sugestões de leitura
BARBALHO, Alexandre & RUBIM, Albino (orgs.). Políticas culturais no Brasil. Salvador, EDUFBA, 2007.
BOTELHO, Isaura.. “A política cultural & o plano das ideias”. In: BARBALHO, Alexandre & RUBIM, Albino (orgs.). Políticas culturais no Brasil. Salvador, EDUFBA, 2007.
BRASIL. Lei n.º 7.505 de 2 de julho de 1986. Dispõe sobre benefícios fiscais na área do imposto de renda concedidos a operações de caráter cultural ou artístico. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7505.htm. Acesso em: 10/06/2021.
BRASIL. Lei n.º 8.313 de 23 de dezembro de 1991. Restabelece princípios da Lei nº 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8313cons.htm . Acesso em: 10/06/2021.
COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. 4ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. 2ª ed. Tradução de Sandra Castello Branco. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
FERRON, Fabio Maleronka; ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Cultura e política: a criação do Ministério da Cultura na redemocratização do Brasil. Tempo soc., São Paulo , v. 31, n. 1, p. 173-193, Apr. 2019 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702019000100173&lng=en&nrm=iso>. access on 17 May 2021. Epub Apr 25, 2019. http://dx.doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2019.144335.
LUKÁCS, Gyorgy. Velha e nova cultura. Marxists.org, 17/01/2005 [1920 original] disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lukacs/1920/mes/cultura.htm Acesso em: 22/05/2021.
WILLIAMS, R. (2005). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. Revista USP, (66), 209-224.
______. Cultura e Materialismo. Tradução de André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011. P.43-68.
______. Marxism and Literature. New York: Oxford University Press, 1977, pp.1-141.
______. Resources of Hope: Culture, Democracy, Socialism. London: Verso, 1989. P. 3- 38.
Artigo importante para todos que desejam pensar os aspectos ideológicos presentes nas medidas políticas ditas culturais.
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