Cidadania e cultura, por Victor Plasa

No contexto da transição para o momento político pós-ditadura, o caráter econômico pautou as produções culturais de modo que o capital monopolista definisse os padrões de conteúdo e formato. Nesse contexto, grandes empresas de outros setores utilizaram a renúncia fiscal prevista na legislação para aumentar seus ganhos e, simultaneamente, fazer propaganda de seus produtos e serviços. O objetivo deste artigo é apresentar a ideia de cultura cidadã baseada na diversidade brasileira, unida ao novo papel de mediador adotado pelo Estado entre 2002 e 2010, que representaram uma nova possibilidade em meio ao contexto neoliberal.

O período em questão foi permeado pela perspectiva da cidadania e da inclusão em todas as políticas públicas implementadas pelo governo de Luís Inácio Lula da Silva.  Na tentativa de consolidar um novo Brasil, cada vez mais democrático, inclusivo e popular, as ações do Ministério da Cultura seguiram as concepções adotadas pela UNESCO, especialmente o conceito antropológico de cultura. Gilberto Gil, ao tomar posse do Ministério apresentou com mais detalhes esse conceito antropológico que seria utilizado, ele entendia cultura


como tudo aquilo que, no uso de qualquer coisa, se manifesta para além do mero valor de uso. Cultura como aquilo que, em cada objeto que produzimos, transcende o meramente técnico. Cultura como usina de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Cultura como o sentido de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos. (GIL, 2003)


 Modificou-se o papel do Estado, passando da não-intervenção como princípio à atuação no sentido de propiciar as condições para inserção dos mais pobres na produção cultural. Compreendia-se que esses atores, por representarem a maioria do povo brasileiro, precisavam de incentivo financeiro e estrutural a partir da máquina estatal, como um intermediador do que já existia e das ações que precisavam de ajuda para surgir.

Novas políticas baseadas na posição do Estado como facilitador surgiram em todos os setores durante o governo Lula. Na cultura, esse processo engendrou uma política inédita na história brasileira, o Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania — Cultura Viva, cujo objetivo era incentivar a produção e fruição de ações culturais populares, isto é, cujos agentes, origens, e referenciais não fossem grandes empresas midiáticas do eixo sudeste. Em conexão com a ideia antropológica de cultura adotada pelos ministros da cultura Gilberto Gil e Juca ferreira, o Cultura Viva fomentou a diversidade a nível local e nacional, colocando o povo no lugar de criador da música, teatro, cinema, artes plásticas, cultura digital, preservação de memória afro-brasileira. O Programa Cultura Viva envolvia um conjunto de ações distribuídas em cinco eixos com diferentes graus de consolidação: Pontos de Cultura, Cultura Digital, Agentes Cultura Viva, Griôs (Mestres do Saber) e Escola Viva; dos quais, três se consolidaram e receberam mais atenção do Ministério.

Os Pontos de Cultura foram o eixo principal. Eles consistiam em unidades de produção, recepção e disseminação culturais e artísticos convencionais que se ligavam em formato de rede a Pontões — unidades maiores responsáveis pela interligação e formação dos Pontos —, trocando conhecimento, referências e reclamações entre si. Funcionavam através de convênios feitos entre pequenas organizações privadas e o Estado. Este forneceria a estrutura, a conexão entre Pontos e verba para que aquelas iniciassem ou ampliassem suas atividades culturais locais conforme seus projetos, objetivos e formatos definidos unicamente pelas instituições. Apesar de ser central, esse eixo identificou problemas com os repasses de verba, interligação de entidades, treinamento e resolução de problemas, dificuldades ligadas ao fato de o Ministério da Cultura não ter estruturas capazes de lidar com o volume de instituições, além de não conseguir contratar e qualificar pessoal.

Outro conjunto que se consolidou foi a Cultura Digital, um kit com computador, equipamentos audiovisuais e software livre para que os Pontos desenvolvessem atividades ligadas ao mundo digital que começava a se estruturar no começo dos anos 2000, os kits foram usados para produção de vídeos, música, peças e outras atividades em parte dos Pontos, por outro lado, houve casos em que não foram utilizados pelos Pontos com receio de danificar ou ter outros tipos de problemas. Finalmente, os Griôs foram um eixo fundamental para a preservação das tradições africanas por todo o Brasil, contudo, por conta do formato diferenciado de atuação, visto que os Griôs não eram instituições, mas pessoas detentoras das tradições, a infraestrutura do Programa passou por dificuldades para estabelecer e realizar as tratativas financeiras dos convênios.

O número de Pontos de Cultura cresceu de 526 até 2007 para 2.600 até 2009 (IPEA, 2011, p.9), fato que evidencia a alta adesão ao Programa e seu crescimento ao longo do período. Esse aumento nos mostra que o novo modelo conseguiu fortalecer e ampliar iniciativas por todo o país a ideia de cultura enquanto prática cidadã de participação, ligada à mudança do lugar da população no processo de produção, fruição e consumo da arte e da cultura e se estabeleceu com relativa solidez. É importante lembrarmos que a cultura de massas produzida pelo capital monopolista continuou sendo hegemônica, usando a chamada Lei Rouanet como ferramenta de aumento do lucro, o Programa Cultura Viva deu forças aos artistas e profissionais culturais que já lutavam e sofriam os efeitos da posição de subalternidade em que foram colocados.

Tendo a cidadania como um dos ideais centrais, o Ministério da Cultura atuou, entre 2003 e 2010, como o mecanismo de incentivo à liberdade. Entretanto, ao contrário do que que pregam os neoliberais, essa agora  ia além da liberdade econômica que atingia apenas grandes empresas — os únicos investidores com capital suficiente para financiar grandes produções como filmes, mostras culturais, festivais e peças de teatro de abrangência nacional. A participação cidadã era estimulada em consonância com o processo de construção do novo Brasil, democrático, diverso e livre da ditadura. Por meio dela, os agentes culturais periféricos foram estimulados econômica e politicamente para dar continuidade a ampliar seu trabalho, que não tinha como ponto central a produção de valor de troca visando o lucro, mas o valor de uso, ou seja, expressar culturalmente sua realidade, suas críticas, interesses, esperanças, além entreter com criações baseadas em referências próximas ao público.

Há, ainda, uma questão a ser levantada acerca do processo assinalado, o fato de que as políticas culturais implementadas não representaram rupturas com a ordem vigente. O projeto petista não teve como horizonte a construção de um processo revolucionário, seu modelo foi pautado pela formulação de acordos e políticas públicas por dentro da ordem burguesa — como foi o caso do Programa Cultura Viva —, que tiveram sua importância para a melhora das condições de vida e acesso a direitos, mas ao fim do segundo governo Lula deixaram de ser prioridade. No cultural, houve a reorganização de secretarias e do foco do Ministério em sua totalidade, causando uma situação contraditória para o Cultura Viva, o governo federal parou de realizar novos convênios e de fornecer qualquer tipo de suporte àqueles já em curso ou conveniados com instâncias estaduais e municipais do programa enquanto foi aprovada a Lei Nacional de Cultura Viva.

Conclui-se que este período foi permeado pela concepção de cultura ligada a cidadania, isto é, o povo brasileiro foi centro das políticas, sendo incluído de forma ativa na produção, o Estado, no que lhe concerne, passou a formular políticas que utilizassem sua estrutura de modo a proporcionar novas formas de garantir os direitos dos cidadãos. Por conta da estratégia política adotada pelo Partido dos Trabalhadores, a criação de políticas públicas e o aumento da importância de fundos públicos foram evidentes durante os governos de Lula, contribuindo para o processo de crescimento econômico advindo de uma série de fatores que não nos cabem aqui.

O recorte trabalhado neste artigo foi o pano de fundo de uma política cultural destoante do conjunto neoliberal adotado antes de 2003. Pode-se notar que o modelo dos Pontos de Cultura foi bastante exitoso apesar das limitações impostas pela realidade da época, a partir dele podemos pensar formas de fomentar a construção de redes culturais sólidas e populares com respaldo técnico, estrutural e econômico do Estado, ainda que independentes dele, capazes, inclusive, de contribuir fortemente para a politização e disseminação de pensamento crítico com o objetivo de auxiliar no processo de tomada de consciência da população acerca das lutas existentes na sociedade brasileira.



Sugestões de leitura

BARBOSA, Frederico; CALABRE, Lia. Pontos de cultura: olhares sobre o Programa Cultura Viva. Brasília: Ipea, 2011. CALABRE, Lia. Política Cultural em tempos de democracia: a Era Lula. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Brasil, n. 58, p.137-156, jun. 2014. __; LIMA, Deborah Rebello. Do do-in antropológico à política de base comunitária - 10 anos do programa cultura viva: uma trajetória da relação entre estado e sociedade. Políticas Culturais em Revista, 2(7), p. 6-25, 2014. COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. 4ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011. DIAS DA SILVA, Rodrigo Manoel. Narrativas de democratização cultural no Brasil: um olhar sociológico ao Programa Cultura Viva. Ciências Sociais Unisinos, Vol. 49, n. 3, septiembre-diciembre, 2013, pp. 269-278. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil. DOMINGUES, João Luiz Pereira. Programa Cultura Viva: políticas culturais para a emancipação das classes populares. Dissertação (mestrado), Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2008. EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. 2ª ed. Tradução de Sandra Castello Branco. São Paulo: Editora Unesp, 2011. FERNANDES. Sabrina. Sintomas Mórbidos. São Paulo: Autonomia Literária, 2019. GIL, Gilberto. Íntegra do discurso de posse do ministro da cultura Gilberto Gil. 2003. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia-e-Redes-Sociais/integra-do-discurso-de-posse-do-ministro-da-cultura-Gilberto-Gil/12/5623 Acesso em: 06/07/2021. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Cultura Viva: as práticas de pontos e pontões. Brasília, IPEA, 2011. LIMA, Deborah Rebello. As teias de uma rede: uma análise do Programa Cultura Viva. Dissertação (mestrado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. 2013. LUKÁCS, Gyorgy. Velha e nova cultura. Marxists.org, 17/01/2005 [1920 original] disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lukacs/1920/mes/cultura.htm Acesso em: 18/06/2021. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. Tradução de Leandro Konder, Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007. ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. PARTIDO DOS TRABALHADORES. A imaginação a serviço do Brasil. 2002. SANTOS, Eduardo Gomor dos. Formulação de políticas culturais: as leis de incentivo e o programa cultura viva. In: BARBOSA, Frederico; CALABRE, Lia. Pontos de cultura: olhares sobre o Programa Cultura Viva. Brasília: Ipea, 2011. SILVA, Frederico A. Barbosa da; ARAÚJO, Herton, Ellery (org.). Cultura viva: avaliação do programa de arte educação e cidadania. Brasília: Ipea, 2010. TURINO, Célio. Ponto de Cultura: o Brasil de baixo para cima. Rio de Janeiro: Anita Garibaldi, 2009. WILLIAMS, R. (2005). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. Revista USP, (66), 209-224. __. Cultura e Materialismo. Tradução de André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011. P.43-68. __. Marxism and Literature. New York: Oxford University Press, 1977, pp.1-141. __. Resources of Hope: Culture, Democracy, Socialism. London: Verso, 1989. P. 3- 38.





Victor Plasa

Licenciado em História pela FMU. Interesse por história social da cultura, ideologia e história política.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O difícil encontro entre o economista e o debate sobre o déficit habitacional brasileiro, por Evandro Luis

A importância da luta pela licença compulsória da vacina contra Covid-19, por Wilson Júnior

Pandemia, desindustrialização do país e a primeira variável capaz de transformar essa situação, por Wilson Júnior