Técnica ou Política? Por onde vamos debater a crise?, por Tales Mançano

“Mais uma vez o país vive uma crise econômica e, mais uma vez, medidas drásticas são implementadas, requerendo sacrifícios presentes da população em nome de um equilíbrio futuro. Mais uma vez um grupo de sábios recomenda a virtude moral da contentação da modicidade e situa suas prescrições no plano da inevitabilidade calculada por uma caixa de ferramentas. Qualquer discussão sobre economia, seus males e seus caminhos sem o pleno domínio dessas ferramentas é deslegitimado.” resume André Vereta-Nahoum (2017, pp. 15-16) a narrativa de grande parte de supostos especialistas em economia a partir de artigo de Alexandre Schwartsman para a Folha de São Paulo.


Esse discurso, majoritário em grande parte da “mídia tradicional", “especialistas do mercado” e mesmo parte da academia, reforça a ideia que, acima de qualquer debate político deve-se prescindir uma aprovação de cunho "técnico" para alguma proposta ser válida. Essa técnica que se pressupõe objetiva, por si só, já parte de pressupostos e permite conclusões em um espectro mais ou menos delimitado, ignorando paradigmas alternativos. Assim surgem duas dimensões aparentemente distintas - técnica e política - mas que estão na realidade profundamente relacionadas. 


Em contraposição a esse debate tecnicista e excludente, tanto com quem quanto para quem se debate, torna-se imprescindível pautar a construção de um conhecimento que se desajusta dessa “caixa de ferramentas” que limita o debate a as possibilidades de soluções e propõe alternativas, mostrando que todas essas tem um fundo inerentemente político. Nesse âmbito vemos economistas e outros intelectuais, alguns deles até mesmo contribuindo com textos para esse site, se contrapondo aos discursos que querem se ver como os únicos qualificados para opinar.


Propostas econômicas alternativas muito competentes, que desafiam os ditos tradicionais formulados pelos “especialistas do mercado" estão em debate, e queremos impulsionar-las, mostrando que trata de uma dimensão da vida social que cabe a todos discutirem, queremos falar sobre alternativas à uma "crise" que nos afeta diretamente de forma mais democrática e mais inclusiva e pensar alternativas menos desiguais de sociedade.


Vemos uma contraposição de perspectivas em algumas notícias da grande mídia (exemplos nas referências) que mobilizaram economistas com abordagens distintas. Nesses veículos, como a Globo, e a Folha de São Paulo (respectivamente o canal de televisão com a maior audiência e o jornal de maior circulação no país) entre outros, vemos, por um lado, a reprodução do discurso excludente que defende propostas que levam a ampliação das desigualdades, como as reformas de interesse do mercado e o corte de gastos, e de outro propostas como a renda básica, taxação dos mais ricos e uma recuperação econômica que leve em conta uma transição ecológica. Assim se configura uma disputa de ideias de como o Estado deve atuar frente à crise, com protagonismo, regulações e políticas públicas ou favorecendo “o mercado”? Há, no segundo discurso a afirmação que a atuação das empresas, com sua responsabilidade “social”, se tivessem certo apoio ou incentivo (talvez isenção e desregulamentação). 


Vimos a defesa de que a iniciativa privada poderia ser uma alternativa relevante para responder a demandas materiais urgentes da pandemia, seja através de entidades filantrópicas, campanhas de arrecadação, empreendedorismo social ou doações específicas de empresas., poderiam garantir muitas das demandas sociais em tempos de crise, já que “muitas empresas e empresários” estariam “empenhados para ajudar o Brasil", como dito repetidamente no Solidariedade S/A do Jornal Nacional, e também ganhou visibilidade no #ComoPossoAjudar da Folha de São Paulo. Ao mesmo tempo, movimentos sociais, comunidades e setores da sociedade civil se organizaram através de campanhas e iniciativas de solidariedade para minimizar o desamparo deixado pela falta de políticas públicas e atuação descoordenada e contraproducente de governos durante a crise.


Entretanto, um levantamento da Associação Brasileira dos Captadores de Recursos mostra que todo esse “empenho” das empresas e empresários e as campanhas de arrecadação, somadas, arrecadaram até dezembro, algo em torno de 6,4 bilhões, cerca de 2% do que o auxílio emergencial demandou de recursos até agora. O auxílio emergencial está longe de ser a totalidade do dinheiro mobilizado pelo Estado em resposta à pandemia, mas mostra o quão mais relevante e imprescindível o Estado é para uma perspectiva de recuperação econômica e  de redução da pobreza e desigualdade amplificadas pela crise. 


Como mostram alguns economistas que se pronunciaram nas notícias elencadas, e mais muitos outros, a crise mostrou que o Estado se mantém como principal agente econômico, provavelmente o único capaz de liderar uma recuperação econômica, e portanto é a partir deste, ampliando sobre as perspectivas e alternativas de sociedade, democratizando o debate e mobilizando propostas econômicas mais sustentáveis, solidárias, menos desiguais e que garantam direitos sociais é que se pode construir alternativas concretas, políticas, mas também inclusivas à crise.


Referências Bibliográficas:


CARRANÇA, T. Cinco propostas para retomar economia após coronavírus. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52274059>. Acesso em: 20 out. 2020. 


COVID 19 - Monitor das Doações. Disponível em: <https://www.monitordasdoacoes.org.br/pt>. Acesso em: 13 dez. 2020. 


Crise e coronavírus: V, U ou W, os 3 cenários possíveis para a recuperação econômica após a pandemia de Covid-19. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/10/crise-e-coronavirus-v-u-ou-w-os-3-cenarios-possiveis-para-a-recuperacao-economica-apos-a-pandemia-de-covid-19.ghtml>. Acesso em: 21 out. 2020. 


Folha promove debate nesta quarta sobre renda básica. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/folha-promove-debate-nesta-quarta-sobre-renda-basica.shtml>. Acesso em: 21 out. 2020. 


GERBELLI, L. G.; MARTINS, R. Recuperação pós-pandemia: crise escancara desigualdade, e Brasil terá retomada lenta, dizem economistas. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/06/01/recuperacao-pos-pandemia-crise-escancara-desigualdade-e-brasil-tera-retomada-lenta-dizem-economistas.ghtml>. Acesso em: 21 out. 2020. 


UNTERSTELL,  Natalie; PINHEIRO, Gustavo T. Retomada da economia pós-coronavírus é oportunidade para descarbonizá-la. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/06/retomada-da-economia-pos-coronavirus-e-oportunidade-para-descarboniza-la.shtml>. Acesso em: 21 out. 2020. 


VEGA, M. Á. G. Como será a economia após o coronavírus. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/economia/2020-04-13/como-sera-a-economia-apos-o-coronavirus.html>. Acesso em: 13 dez. 2020. 


VERETA-NAHOUM, A.. Sociologia Econômica do Brasil: Balanço de um campo jovem. In: Miceli, Sergio; Martins, Carlos Benedito. (Org.). Sociologia brasileira hoje. 1 ed.São Paulo: Ateliê, 2017, v. 1.




Tales Mançano

Graduando em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), pesquisa sobre  comportamento político de atores econômicos e  tem interesse por sociologia econômica. Contato em: tales@desajuste.org.



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