Um ministério para o futuro, por Beatrice F-Weber

O novo livro de Kim Stanley Robinson, intitulado "The Ministry for The Future", que poderíamos traduzir como Ministério pelo Futuro, é uma obra de distopia climática. Na obra, o autor tenta retratar como se dariam as próximas décadas, pensando como seria a transição para uma economia e organização social que evitasse a completa destruição do planeta, e consequente extinção da humanidade. Mesmo se tratando de uma ficção, há também trechos teóricos, que ajudam a embasar parte das importantíssimas discussões que o livro pauta.

Como a obra ainda está disponível apenas em inglês, traduzimos um capítulo para aguçar a curiosidade dos leitores. Aproveitem!

E quem tiver interesse em conhecer mais sobre o autor, e sobre o livro, recomendo essa entrevista na Revista Jacobin, e essa entrevista no podcast The Ezra Klein Show. Ambas também em inglês.

Capítulo 20 

O coeficiente de Gini, derivado pelo sociólogo italiano Corrado Gini em 1912, é uma medida de disparidade de renda ou riqueza em uma população.  É usualmente apresentada como uma fração entre 0 e 1, e parece fácil de ser entendida, pois 0 é o coeficiente caso todos tivessem uma mesma quantidade, enquanto 1 seria o resultado se uma pessoa possuísse todos os recursos, e todos os demais não tivessem nada. Em nosso mundo real de meados do século XXI, países com um baixo índice de Gini, como sociais-democracias, estão um pouco abaixo do 0,3, enquanto países altamente desiguais estão um pouco acima do 0,6. Os EUA, a China, e muitos outros países viram seu índice de Gini crescer rapidamente na era neoliberal, de 0,3 ou 0,4, até 0,5 ou 0,6. Isso com quase nenhuma resistência daqueles que mais saem perdendo desse aumento de desigualdade, na verdade aqueles que mais sofrem frequentemente votam nos políticos que contribuem para o aumento do empobrecimento relativo. Daí o poder da hegemonia: podemos ser pobres, mas ao menos somos patriotas! Ao menos somos independentes e podemos tomar conta de nós mesmos, e por aí vai, até uma morte prematura, já que a expectativa de vida dos cidadãos mais pobres nesses países é muito mais curta do que dos cidadãos endinheirados. E a expectativa de vida, de modo geral, está decaindo pela primeira vez desde o século XVIII. 

Não pense, no entanto, que o coeficiente de Gini sozinho é suficiente para descrever a situação; isso seria sucumbir a monocausotaxophilia, a paixão por explicar tudo com uma única ideia, um dos erros cognitivos mais comuns da humanidade. O índice de Gini para Bangladesh e para Holanda são quase os mesmos, por exemplo, de 0,31; mas a renda média mensal de Bangladesh é cerca de US$2000, enquanto da Holanda é de US$50 000. A distribuição entre os mais ricos e os mais pobres é uma consideração importante, mas quando todo mundo nessa distribuição está razoavelmente bem de vida, é uma situação bem diferente de quando todo mundo é pobre. 

Por isso que outras métricas para pensar sobre desigualdade foram desenvolvidas. Uma das melhores é o “Índice de Desenvolvimento Humano ajustado para desigualdade”, o que não é surpreendente, dado que o IDH já é uma ferramenta bastante poderosa. O problema é que o índice simples, sozinho, não revela a distribuição interna de coisas boas e ruins no país estudado, de forma que o ajuste para desigualdade, fornece um retrato com maias nuanças do real estado da população. 

Ainda discutindo desigualdade, deve-se pontuar que o coeficiente de Gini para o mundo é mais alto do que para qualquer país individual, basicamente porque há muito mais pessoas pobres no mundo do que ricas, de modo que de forma acumulada, globalmente, o índice chega a cerca de 0,7. 

Além disso, há várias formas de indicar desigualdade de forma mais anedótica (ou talvez devamos como colocar, em termos mais humanos) do que através desses índices. As três pessoas mais ricas do mundo possuem mais recursos financeiros do que todas as pessoas nos 48 países mais pobres juntas. O 1% mais rico da população humana tem mais dinheiro do que os 70% mais pobres. E assim segue. 

Ainda mais, perceba que essas disparidades de renda vêm crescendo desde 1980, e são umas das características que definem o neoliberalismo. A desigualdade atingiu níveis não vistos desde a Era Dourada do final do século XIX1. Olhando através de certos ângulos, podemos enxergar esse momento como o mais desigual de toda a história humana, ultrapassando até o período feudal, por exemplo, assim como os estados guerreiros/padre/camponês. Além disso, os dois bilhões de pessoas mais pobres no planeta ainda não têm acesso a coisas básicas, como banheiro, casa, comida, saúde, educação etc. Isso significa que um quarto da humanidade, o que equivale a toda a população humana no ano de 1960, vive em condições de vida piores do que aqueles mais miseráveis durante o período feudal ou até mesmo o Paleolítico Superior. 

Daí a desigualdade no nosso tempo. É um problema de estabilidade política? Talvez em estados autoritários, controlados por militares, não seja. É um problema moral? Mas a moralidade é uma questão de ideologia, a relação imaginária do indivíduo com a situação real, e muitos podem facilmente imaginar que você tem aquilo que você merece. Então, moralidade é uma estrada escorregadia. 

Não à toa, muitos enxergam a desigualdade como um problema essencialmente econômico; crescimento e inovação, é dito, são mais devagares quando há muita desigualdade. É a isso que nosso pensamento foi reduzido: essencialmente uma análise neoliberal de uma situação neoliberal. É a estrutura do nosso tempo; não podemos pensar em nada que não seja em termos econômicos, nossa ética deve ser quantificada e rankeada, a partir dos efeitos que nossas ações terão sobre o PIB. Isso é colocado como a única coisa na qual as pessoas podem concordar. Apesar de quem diz isso é comumente os próprios economistas. 

Mas esse é o mundo no qual vivemos. Então as pessoas tentam inventar novos índices para tentar lidar com esse problema. E de fato, nós vimos uma grande proliferação desses. 

Lembre-se de que o PIB, produto interno bruto, a métrica dominante na economia no último século, consiste na combinação de consumo, mais investimentos privados, mais gastos públicos, mais exportações, menos importações. Há muitas críticas ao PIB, como o fato de incluir atividades destrutivas como números econômicos positivos, e excluir muitos tipos de externalidades negativas, assim como questões como saúde, reprodução social, satisfação dos cidadãos etc.

Medidas alternativas que compensam essas deficiências incluem: 

O Indicador de Progresso Genuíno (GPI), que usa 26 variáveis para chegar em um único número índice. 

O Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, desenvolvido pelo economista paquistanês Mahbub ul Haq, em 1990, que combina expectativa de vida, níveis de educação, e renda bruta per capita (posteriormente a ONU introduziu o IDH ajustado para desigualdade). 

O Relatório de Riqueza Inclusiva da ONU (IWR), que combina capital manufaturado, capital humano, capital natural, ajustado para fatores que incluem emissões de carbono. 

O Índice do Planeta Feliz (HPI), criado pelo New Economics Forum, que combina o bem estar reportado pelos cidadãos, expectativa de vida, e desigualdade de resultados, dividido pela pegada ecológica (nessa métrica, os EUA pontuam 20,1 de 100, e está em 108º lugar dos 140 países avaliados)2

O índice de Sustentabilidade Alimentar (FSI), formulado pelo Barilla Center for Food and Nutrition, que usa 68 métricas para medir segurança alimentar, bem estar e sustentabilidade ambiental. 

A Pegada Ecológica, desenvolvida pela Global Footprint Network, que estima quanta terra seria necessária para sustentar o estilo de vida de uma cidade ou país, uma quantia sempre consideravelmente maior do que a entidade política sendo avaliada, com exceção de Cuba e alguns outros poucos países. 

E o famoso índice de Felicidade Interna Bruta, do Butão, que usa 36 métricas para mensurar a felicidade em termos quantitativos. 

Todos esses índices tentam retratar a civilização em nosso tempo em termos do discurso hegemônico, ou seja, a economia, muitas vezes na tentativa de tentar forçar uma transformação na própria disciplina econômica, tentando torná-la mais humana, mais ajustada à biosfera etc. Não é de modo algum um impulso ruim! 

Mas é importante, às vezes, trazer essa questão do mundo da quantificação, para o reino humano e social. Perguntar o que tudo significa, qual o sentido de tudo. Considerar os axiomas sobre os quais estamos acordando viver. Reconhecer a realidade de outras pessoas, e do próprio planeta. Ver a cara de outras pessoas. Andar na rua e olhar envolta. 

 

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1 N.T: Na história dos Estados Unidos da América, a "Gilded Age" ("Era Dourada") é o final do século XIX, da década de 1870 até cerca de 1900. Foi um período marcado pelo rápido crescimento econômico. 

2 N.T:  O Brasil pontua 34,3,  e está em 23º. 



Beatrice F-Weber

Doutoranda em Economia no Insper, seguindo a trilha de Microeconomia Aplicada. Bacharela em Economia pela FEA-USP. Tem interesse na área de Meio Ambiente e Recursos Naturais, com foco em combate às mudanças climáticas e justiça climática. Contato em: beatricefw@desajuste.org


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