O mito liberal do Nacional-Desenvolvimentismo, por Danillo Bueno

No dia 3 de Fevereiro, Zeina Latif (economista da XP Investimentos) publicou em sua coluna no jornal O Globo o artigo “O Liberalismo Viúva Porcina”, onde debateu dois assuntos principais. O primeiro é que as estratégias nacionais-desenvolvimentistas levaram o Brasil à crise atual e o segundo é que liberalismo econômico foi crucial para o crescimento econômico brasileiro nos mais diversos períodos (Castelo Branco, Collor, FHC e Lula 1). Deixando o segundo ponto para um outro momento, vamos debater essa concepção liberal sobre o que é o nacional-desenvolvimentismo tão divulgada ainda hoje e a importância dessa estratégia política atualmente.


De início, é necessário entender o porquê da necessidade de um desenvolvimento da indústria nacional como forma de superação do subdesenvolvimento. Podemos definir o subdesenvolvimento como "um processo histórico autônomo, e não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento" (Furtado, 2009, p. 161), sendo esse processo "um subproduto desse desenvolvimento, ou seja, uma estrutura produtiva historicamente determinada pelo desenvolvimento do capitalismo europeu" (Bielchowsky, 2004, p. 138).


A partir do processo de formação de um núcleo industrial durante a Revolução Industrial no século XVIII, as relações econômicas e políticas entre nações passaram a se dar de maneira desigual, formando dois blocos de países, dividindo-os com base em suas formações econômicas. O primeiro bloco é o bloco dos países da centralidade do capitalismo, que passaram pelo o chamado de desenvolvimento clássico,  que consiste em uma incorporação de tecnologias agregadoras de fatores de produção, principalmente absorvendo mão-de-obra do setor pré-capitalista, que pouco a pouco vai sendo desestruturado. O segundo bloco, dos países da periferia do capital, são as nações que passaram por um processo de industrialização rápida e com forte intervenção do Estado, sobretudo na forma de Industrialização por Substituição de Importações (ISI), que consiste numa industrialização resultante da redução da oferta de produtos manufaturados no setor externo, da mudança no núcleo dinâmico do mercado interno e de um aumento da produção interna para suprir essa demanda.


A forma de ISI acontece também num contexto em que o país subdesenvolvido não controla a tecnologia que será implementada. Isso tende a reproduzir o padrão tecnológico da indústria dos países desenvolvidos com atrasado, absorvendo uma tecnologia que agrega um montante de fatores de produção menor do que o potencial  (sobretudo a mão-de-obra subempregada do setor pré-capitalista) e atingindo setores bem específicos da economia, principalmente os ligados à exportação.


A partir dessa relação entre os países do primeiro e do segundo bloco, Raúl Prebisch cria o conceito de "Centro-periferia", onde, em linhas gerais, explica que "a divisão internacional do trabalho provocou, desde os primeiros estágios do capitalismo industrial, efeitos diferenciados nas economias das duas regiões [Europa e América], fazendo com que ambas se distanciassem crescentemente em termos de estágio de desenvolvimento" (Bielchowsky, 2004, p.16).


Para os economistas desenvolvimentistas (com foco nos estruturalistas), essa estrutura subdesenvolvida ainda vem com uma série de problemas sociais característicos dessa formação, sendo a principal dela a coexistência de setores modernos de alta produtividade, ligados às atividades de exportação, e de setores de subsistência, com níveis de produtividade inferiores aos do primeiro setor (Bielchowsky, 2004, p. 137). Assim, para boa parte deles, o processo de desenvolvimento econômico que buscavam consistia em um processo de industrialização e de homogeneização dessas estruturas duais. Celso Furtado, principal economista da escola estruturalista, vai além. Nas palavras de Silvio Almeida, reproduzindo as ideias de Furtado, "segundo essa perspectiva, o desenvolvimento não se restringiria a uma projeto nacional de industrialização, formação de mercado interno e fim da dependência externa, mas também englobaria a ideia de bem-estar social, de democracia, de distribuição de renda e busca da igualdade" (Almeida, 2019, p. 191-192).


Podemos ver então que, contrariamente ao que foi escrito Zeina e compartilhado pelo deputado federal Felipe Rigoni (PSB-ES), a estratégia nacional-desenvolvimentista não é uma herança da ditadura que defende um Estado interventor e "inchado". O Nacional-Desenvolvimentismo é um processo de conquista da autonomia política e econômica dos países subdesenvolvidos, caminhando lado a lado ao desenvolvimento das instituições, redução de desigualdades e aprofundamento da democracia. A necessidade da unidade nacional em torno de um Estado para o desenvolvimento das forças produtivas já era objeto de estudo desde Friedrich List (1841). No Brasil, o ciclo desenvolvimentista surge ainda nos anos 30, com Getúlio Vargas e a criação da Petrobrás, Eletrobrás, BNDE (futuramente transformado em em BNDES), e continua ao longo dos anos 40 e 50, com marcos importantes como o Plano de Metas de JK e as Reformas de Base de Jango. Com o Golpe de 64, boa parte dos teóricos do desenvolvimentismo (e seus críticos à esquerda) são exilados e começa então um ciclo de políticas econômicas que, mesmo com forte intervenção estatal, é marcado pela participação ativa de expoentes do liberalismo brasileiro, como a participação de Roberto Campos e Otávio de Gouveia Bulhões. Em dado momento, uma política econômica coordenada pelo Estado é retomada, sobretudo com os PNDs, mas ainda longe do que era entendido como desenvolvimento econômico em sentido amplo.


Reduzir o Nacional-Desenvolvimentismo brasileiro a uma política de "intervenção estatal para desenvolvimento de economias atrasadas" e associá-la à Ditadura Militar, excluindo todo uma história anterior que lutou pelo desenvolvimento independente do país, que conta com seus erros e acertos e ainda se faz presente (e necessário) no Brasil atual, é desonesto. Na mesma balança, o mesmo vale para o Liberalismo. Não podemos reduzi-lo somente à política de livre mercado, privatizações e reformas, ainda que estas sejam suas formas principais. Na periferia do capital, pouco vale tais classificações formuladas a partir de um contexto europeu. Aqui, liberal "incha" o Estado para ganhar eleições parlamentares e nacionais-desenvolvimentistas são fiscalistas e buscam reduzir o déficit primário caso governem. Uma série de contradições sem fim que só são possíveis nos países latino-americanos, frutos também de outras inúmeras contradições.


O que fica no fim é sempre o mesmo movimento dos defensores da doutrina liberal. Se um governo com claros contornos autoritários busca realizar privatizações, reformas e liberalizar a economia de uma forma geral, não importa seus excessos e seus ataques à democracia, ele ainda vai ser liberal o suficiente para ser defendido. Caso se perceba que suas reformas apenas engatinham e que não atendem às expectativas no tempo determinado, o governo passa a não ser liberal o suficiente.


Referências


Almeida, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo. Pólen, 2019;


Bielschowsky, Ricardo. Pensamento Econômico Brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro. Contraponto, 2004;


Furtado, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro. Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado, 2009.





Danillo Bueno

Graduando em economia pela Universidade Federal Fluminense. Tem interesse em História do Pensamento Econômico, Economia Política e Macroeconomia.


Comentários

  1. Muito bom Danillo, uma reflexão muito necessária nesses tempos em que tudo é facilmente confundido e colocado "numa mesma caixinha". Revisão excelente, didática e resposta muito importante para o debate público, obrigada.

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